Eco-História do Cerrado

A expressão Homo-cerratensis foi criada pelo pesquisador Paulo Bertran, para batizar simbolicamente a descoberta feita pelo professor e pesquisador Altair Sales Barbosa do esqueleto humano mais antigo das Américas. O esqueleto pertence a um indivíduo do sexo masculino e foi encontrado dentro do início das camadas Pleistocênicas, em escavação arqueológica realizada na região de Serranópolis-Goiás, com a idade de 13.000 anos antes do presente (A.P.), após recalibragem do Método Carbono 14. Embora o esqueleto seja de um Homo-sapiens-sapiens, um dos ancestrais dos indígenas no Brasil, isso não o configura como o vestígio mais antigo da ocupação humana americana. Há outros vestígios não esqueletais que acusam a presença dos seres humanos no Continente Americano em épocas mais antigas. Com o passar do tempo, a expressão Homo-cerratensis passou a designar também o habitante tradicional do Cerrado, fruto ou não de miscigenações e troca de conhecimentos entre populações indígenas, portuguesas e africanas.

Paulo Bertran

Paulo Bertran Wirth Chaubub nasceu em Anápolis, Estado de Goiás, no dia 21 de outubro de 1948; era filho de Tufi Cecílio Chaibub e Maria Helena Wirth Chaibub. Para continuar seus estudos, primeiro ele foi morar em Goiânia e depois foi para o Distrito Federal, onde se formou em Economia pela Universidade de Brasília, com pós-graduações em História e Planejamento pela Universidade de Strasbourg – França. Os amigos garantem que Paulo também era um ótimo pianista. Ele era fazendeiro (criava gado curraleiro na fazenda do Assombrado) e especialista em construção de casas de barro. Aguerrido defensor do Cerrado, ele forjou a termo Homo Cerratensis, designando as pessoas que vivem neste rico bioma e suas características únicas.

O historiador Paulo Bertran era casado com Maria das Graças Fleury Curado, com quem criou o Memorial das Idades do Brasil, em Brasília. Ela preside o Instituto Bertran Fleury, OSCIP criada em 2003, que mantém a página www.paulobertran.com.br. Paulo era pai de João Frederico, Maria Paula e André Gustavo Bertran.

O pesquisador foi diretor-geral do Instituto de Pesquisas e Estudos Geográficos do Brasil Central da Sociedade Goiana de Cultura e professor da Universidade de Brasília (UnB), da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Universidade Católica de Goiás, atual Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Paulo Bertran também integrou a Academia Brasiliense de Letras, a Academia de Letras e Artes do Planalto e era sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás e dos IHG’s do Distrito Federal e de São Paulo. Ele era membro da Academia Paulistana de História e da Organização das Nações Unidas para a Educação, Arte e Cultura (Unesco) e do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Paulo Bertran introduziu o conceito de Eco-História, contribuindo ativamente com a historiografia brasileira.

Com o seu conhecimento e o incansável trabalho de campo, Paulo Bertran foi o responsável e se desincumbiu bem da histórica tarefa de justificar o dossiê, documento essencial para o título de Patrimônio Histórico e Cultual da Humanidade, que foi muito comemorado pelo povo da Cidade de Goiás e representou um novo estímulo ao turismo, levando milhares de pessoas a visitar o belo conjunto arquitetônico, herdado dos tempos coloniais. Ele também ajudou a colocar a candidatura de Goiânia como Patrimônio Nacional, devido à riqueza de suas construções em Art Déco. Além das nossas fronteiras, o goiano foi o responsável pelo tombamento da cidade de Cáceres, no Mato Grosso.

Em 2002, Paulo Bertran redescobriu (a descoberta foi em 1871), a maior cidade de pedra do Brasil, na Serra dos Pireneus, localizada no município de Pirenópolis. O Monumento natural, com cerca de 500 hectares, abriga formações rochosas imponentes. O jornal O Popular fez reportagens sobre o local, tornando-o conhecido em todo o país e no mundo.

Paulo Bertran é autor de vários livros enfocando aspectos históricos de Goiás e do Planalto Central, que foram frutos de pesquisa criteriosa e dedicada. Dentre seus livros, podemos destacar: Formação Econômica de Goiás – 1979; Memória de Niquelândia – 1985: Uma Introdução à História Econômica do Centro-Oeste do Brasil – 1988 (Prêmio Literário do Instituto Nacional do Livro – INL – 1989; História da Terra e do Homem no Planalto Central – 1994 (Prêmio Clio de História da Academia Paulistana de História – 1995); Notícia Geral da Capitania de Goiás – 1997; História de Niquelândia – 2ª edição revista e ampliada – 1998 e Cerratenses – poesia – 1998; Cidade de Goiás – maio 2002. Seu último trabalho de pesquisa, a história de Palmeiras de Goiás, era um presente para comemorar o centenário da cidade.

O historiador Paulo Bertran Wirth Chaibub morreu no dia 2 de outubro de 2005, em Goiânia, vítima de parada cardiorrespiratória, aos 56 anos de idade. Como era seu desejo manifesto, o corpo dele foi sepultado no Cemitério São Miguel, na cidade de Goiás, no jazigo da família Fleury.

Fonte: http://www.ccon.go.gov.br/homenageados_detalhes/Paulo+Bertran/7

Eco-história

A NOÇÃO DE ECO-HISTÓRIA

Deusdedith Junior (UniCeub)
Rosângela Corrêa (Faculdade de Educação-unB)

Quando traz no próprio título a intenção de abordar a história do Planalto Central em uma perspectiva particular, qual seja, a da eco-história, Paulo Bertran decide por um argumento novo que vem se acrescentar às perspectivas da história regional e da história do cotidiano. Aqui, região e cotidiano são elementos fundamentais para a percepção de um percurso histórico, mas que tal percurso se explica de modo mais abrangente quando considera a influência que o “cenário”, o meio onde se desenrola a história, produz sobre a própria história.
Não se trata, como já se pretendeu antes, de decidir entre a ação humana e a estrutura social, considerando que esta se sobrepõe àquela, ou ainda, de forma mais determinista, que o meio ambiente produz sobre os seres humanos influência tal que não poderiam agir de outro modo, condicionados que são dos fatores externos (sejam sociais ou naturais). Há uma interminável discussão sobre estas questões, pouco interessantes para a construção de modelos de interpretação histórica na atualidade, pois que repetem vícios antigos pouco producentes. Por outro lado, a relação entre os seres humanos e o meio ambiente é um fato que não pode ser descartado pelas ciências sociais, possuindo tantas facetas quantas são as questões que fundam sobre a vida humana.
A abordagem histórica que procura marcar os modos como a relação entre os seres humanos e o meio ambiente constrói saberes sobre o mundo, capaz de dar a uma determinada região um sentido particular e com esse sentido uma especificidade cultural (local ou regional) é o que Paulo Bertran trata por eco-história.
A perspectiva da eco-história deve considerar:
• Que a vida cotidiana se desenvolve a partir das relações entre os seres humanos e entre estes e a natureza.
• Que as relações entre os seres humanos e a natureza se organiza e se produz a partir de um saber que os seres humanos constroem sobre o meio em que vivem.
• Que esse saber sobre o meio em que vivem os seres humanos se constitui num modo de estar no mundo, fundando ao mesmo tempo uma cultura particular e um sentido de naturalidade à vida humana.
• Que a organização do mundo em que vive, por se produzir no âmbito da cultura, expressa-se antes como linguagem.
• Assim, a eco-história consiste no reconhecimento do modo como os seres humanos organizam as suas vidas a partir do modo como identificam o meio ambiente.

Definida a eco-história, podemos considerar que ela pode ser expressa a partir dos olhares produzidos sobre a vida cotidiana, podendo observar:
• Os hábitos alimentares.
• A produção econômica.
• A organização urbana e a relação campo/cidade.
• As tradições religiosas (naquilo que explica a realidade do mundo e as relações possíveis com ele).
• A organização do trabalho (nas suas relações com o meio ambiente).
• Os rituais e os mitos (como forma de interação e de reconhecimento da realidade do mundo)
Uma abordagem de eco-história privilegia o tempo da longa duração, na medida em que observa como se constitui e permanece um saber que organiza a vida cotidiana.
Pequenas distinções são necessárias que se faça entre o que Paulo Bertran propõe como eco-história e outros autores como Simon Schama (1996) e Victor Leonardi (1999) tratam por história ambiental, pois nessa privilegia-se a incorporação das variáveis ambientais na história social e nas relações de trabalho, enquanto que naquela o elemento cultural e os aspectos do cotidiano são os objetos privilegiados. Sutileza que não pode levar a um antagonismo entre as duas abordagens, pois que podem ser complementares nas análises que pretendem ser mais abrangentes.
A história ambiental e social considera que bacias hidrográficas e aspectos dos solos devem ser considerados para explicar os processos de ocupação e as formas de organização do trabalho. Segundo Leonardi, “o extrativismo, por suas próprias características, é atividade que não pode ser pensada como se os seres humanos pairassem acima da natureza e do meio ambiente” (1999:15).
Para Victor Leonardi, a principal característica da história ambiental é o novo olhar que lança sobre a história econômica, evitando os reducionismos que a envolveu, mas sem abandonar esse aspecto da realidade. A história ambiental, portanto, pretende ver as relações de trabalho e de produção não como determinadas pelas feições do meio ambiente (o que a conduziria a outros reducionismos), mas como uma sociedade que se define pela relação cultura-natureza, conceitos pares que se complementam ao invés de se opor.
Vamos nos deter, porém, no modo como Paulo Bertran caracteriza a categoria que lhe serve de base para pensar a história em sua obra “História da terra e do homem no Planalto Central – Eco-história do Distrito Federal: do indígena ao colonizador” (2000), um livro dedicado à reconstituição histórica de uma região que ao longo de cinco décadas privilegia uma história “sem passado”, fundada na modernidade constituída por uma cidade planejada e ancorada em uma ideia de futuro sem laços com o passado. Trata-se, portanto, de uma das primeiras – senão a primeira – investida na vinculação das marcas de identidade modernas com o passado colonial da região de Brasília, laços fundamentais para que faça sentido o futuro dessa região.
Na sua reconstituição histórica do Planalto Central Paulo Bertran destaca, o longo tempo da ocupação humana dos cerrados, marcado pela presença de grupos humanos nômades que há onze mil anos faziam uso dos recursos naturais providos de um profundo conhecimento sobre as possibilidades de utilidade e o tempo necessário de se retirar em busca de condições mais propícias:
“A história do Planalto Central é interminável: pelas dimensões geológicas remonta, no mínimo, a 1 bilhão de anos. Pela escala arqueológica, da povoação indígena, pode retroceder a 12 mil anos ou muito mais. E pela sua colonização gregária, por colonizadores de extração luso-brasileiro-africana, teria no mínimo dois séculos e meio, fazendo aqui proliferar a civilização, ecologicamente diferenciada, do Homo cerratensis. Mostramos, em diferentes momentos deste livro, que o Distrito Federal e o Planalto Central tiveram uma expressão histórica própria. O bioma cerrado é vasto, mas compõe-se de nichos ecológicos diferenciados – como o planalto de altitude – que conformam eco-histórias sutilmente diferenciadas”.
Em seguida, a região do Distrito Federal tornou-se, como se pode verificar nos vestígios deixados por grupos indígenas nas áreas de caça privilegiada pela intensa presença de uma grande fauna do cerrado, principalmente veados, tornando-se freqüentada regularmente, provavelmente fundando caminhos que foram esquecidos ou aproveitados no processo de ocupação lusa que nessa região iniciou-se nos primeiros anos do século XVIII. Segundo Bertran, “a hipótese por si só entalha novo paradigma para a abordagem eco-histórica, que é o da ação antrópica presente nas características do meio ambiente, desde o surgimento das primeiras sociedades (p.24).
Enquanto o final do século XVII foi marcado, apesar da pouca documentação, pela presença jesuíta que subia o rio Tocantins intentando a catequese do indígena, foi seguramente o bandeirante paulista, ora buscando alternativa à presença portuguesa nas Minas Gerais, ora buscando novos caminhos a partir de São Paulo, os que buscaram no território goiano novos veios auríferos, encontrando-os na região do rio vermelho em 1726.
Partindo de São Paulo, vagando pelo sul goiano, o bandeirante paulista trouxe os elementos formadores da cultura caipira, a mesma que haviam levado para a formação da região mineira das Minas Gerais. Mas vindo de Minas, paulistas e portugueses buscaram antes os contornos do rio São Francisco, tornando o território do Distrito Federal rota de trânsito para as minas goianas.
Desde os primeiros anos do período da mineração aurífera de Goiás a região do Distrito Federal, através dos seus caminhos, conduzia para Minas e para a Bahia a riqueza produzida pela mão escrava e dava entrada de produtos necessários à sobrevivência da sociedade mineradora, conduzidos por tropeiros, como José da Costa Diogo, que em 1734 atravessava a futura estrada real em busca da Varia Fortuna. Afinal, “sobreviver antigamente nos cerrados, as assim chamadas savanas do interior brasileiro, era um exercício da arte ecossistêmica” (p.33).
Continuou ocupado o território brasiliense e nos séculos XVIII e XIX tornou-se pasto das vastas fazendas dos municípios de Couros (Formosa) e Santa Luzia (Luziânia), entrecortado por caminhos que conduziam gados e produtos levados e trazidos de outras regiões, assim como novos elementos culturais, como, mais profundamente nesse período, cultura sertaneja de piauienses, baianos e outros nordestinos.
A ideia equivocada de que não existia gente quando Brasília foi construída é um grande equívoco pois Bertrán comenta: <> Ao pernoitar no dia 10 de outubro de 1778 na Contagem de São João das Três Barras, em pleno Distrito Federal, o Governador Luís da Cunha Menezes, a quem referimos em outra parte, depois de viajar todo o dia pelo Distrito Federal na trajetória de Formosa – Mestre d’Armas, escreve: …<> No dia seguinte, indo dormir nas proximidades de Brazlândia, comentava em seu diário: … <>
Infelizmente ainda paira no imaginário brasileiro que antes da construção da nova capital do Brasil existia um vazio demográfico e cultural nestas terras mas Bertran nos mostra que:
“De fato antes que se entranhasse a decadência da mineração e sobreviesse o império da subsistência, existiram grandes fazendas de engenho na região. O Centro Oeste experimentou, com a sua ocupação branca, a montagem de novos modelos de exploração dos recursos naturais para a sustentação da economia mineradora, cuja finalidade e efeitos financeiros e sociais, previam-se, desde o início, para fora da própria colônia – isso explica em parte o espírito de aventura e o desejo do retorno marcado pela despreocupação com a formação familiar. Mas tais modelos tiveram antes que ser adaptados aos ambientes dos cerrados e às formas de vida humana nele possíveis” (p.175).
Quando reacendeu, para as elites, o antigo interesse de interiorização da capital do Brasil, em fins do século XIX e ao longo da primeira metade do século XX, a definição do quadrilátero do Distrito Federal contou antes com o profundo conhecimento que os cerratenses que por aqui moravam possuíam e puderam oferecer às comissões delimitadoras do território da capital. É assim que Paulo Bertran organiza o processo de ocupação humana dos cerrados do Planalto Central, sempre relacionando os aspectos ambientais com os vários elementos culturais que se desenvolveram, se dissolveram e se reorganizaram, construindo modos de vida peculiares, capazes de configurarem marcas de identidade e cotidianidades distintas.
São, portanto, nos vários elementos que compõem a vida cotidiana, a organização do trabalho e os processos produtivos que se revelarão as estratégias formadoras de traços culturais que, por sua vez, indicam o estreito relacionamento entre o mundo da cultura e o meio em que ele se desenvolve, perfigurando o sentido de eco-história.
O cerratense que se forma no Planalto Central, ao modo de outros tipos culturais que preencheram o território brasileiro, viveram um misto de convivência com uma fauna e flora locais e outras conhecidas e domesticadas de outras porções americanas, bem como com uma fauna e flora européias e conhecidas dos europeus nos seus processos expansivos. Formou-se um saber sobre o meio ambiente generalizado e internacionalizado, mas sem perder os “sotaques” locais. A modernidade vem marcada por essa nova relação – ameaçadora, diga-se de passagem – com o meio ambiente.
A eco-história também se apresenta no discurso, como a sobrevivência de culturas do passado em toponímias e outras estruturas culturais-lingüísticas que permanecem, justificando os sentidos de pertencimento e territorialidade. Assim, Bertran nos comenta que:
“Urbano, em seu roteiro do Sudoeste Goiano, primava pela arte das denominações do que ia ser descoberto: ora uma Torre de Babel, extraída da literatura bíblica para referir-se a uma serra próxima ao rio dos Pilões (onde havia de fato pilões naturais cavados pelas águas), ora um Morro da Canastra, com o exato perfil de uma canastra, mala de couro ou madeira de tampa côncava, com que se cingiam as tropas de eqüinos, ou seja, transposto para a geomorfologia, um morro eriçado, com altas falésias despenhadas em cortes planos retilíneos. Há também um outro tipo de formação geológica muito erodida, um morro arredondado, em que o sertanejo vê semelhança com a carapaça de um tatu-canastra. E só nisso temos duas denominações idênticas para duas denotações ideográficas dissemelhantes no tempo e no espaço. A semiologia na natureza e a toponímia ainda têm muito a aprender em reciprocamente: nenhum nome é gratuito e todos os nomes pagam tributo às eco-histórias que os conformaram. Diziam Henrique Silva e Diogo de Vasconcelos, no começo do Século, que o nome do Rio São Bartolomeu emprestado ao principal ribeirão do Distrito Federal era uma homenagem a Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera II, que ali estivera: e este é um exemplo da não-gratuidade dos nomes a que nos referíamos” (p.137).
Quantas vezes passamos pelos lugares e não temos a menor ideia das histórias vividas por tanta gente que ali viveu e que ainda vivem neste lugar. Bertrán nos chama atenção: “Está aí o Distrito Federal: todo ele palatável e útil, bem ao gosto indígena e sertanejo. Sua toponímia come-se, veste-se, emprega-se em ranchos e utilidades doméstica e, antes de mais nada, constrói um vasto discurso ecossistêmico nas raízes da história. Pura matéria de Eco-História (p.23).
Mas o Cerrado viu-se modificado até a sua quase destruição, em 2010, fora desmatado em 49%, o que é mais grave no caso do Estado de Goiás em que a situação é mais agravante pois estimativas revelam que cerca de 90% de todo bioma já se encontra alterado. Buriti, ingá, quaresmeira, cagaita, guariroba, pequi, mama-cadela, paineira, angico, jatobá, canela de ema, ipê. Estas são apenas algumas das mais conhecidas plantas nativas do Cerrado mas existem mais de 10 mil espécies vegetais identificadas pelos cientistas. Cerca de 4.400 dessas espécies são endêmicas, ou seja, só existem nesta região. Muitas delas servem como base para a alimentação humana, entre elas, o pequi, o baru, a cagaita, o jatobá e tantas outras, e medicamentos, como o velame, a lobeira, a calunga, o barbatimão e uma infinidade de plantas usadas ancestralmente pelas populações do Cerrado.
Com uma grande variação de ambientes, as espécies de animais e plantas apresentam uma grande associação com os ecossistemas locais, podendo ser encontrados vários exemplos de espécies muito ligadas aos ambientes naturais. Assim, aves como o soldadinho (Antilophia galeata) ou o pula-pula-de-sobrancelha (Basileuterus leucophrys) somente podem ser encontradas em matas de galeria (Machado 2000). Mamíferos como o ratinho Kunsia fronto só existem em formações de cerrado mais denso (Marinho-Filho et al. 2002). Lagartos como o Cnemidophorus ocellifer só ocorrem em cerrados de terrenos arenosos. Palmeiras como o buriti (Mauritia flexuosa) estão muito associadas com as formações de veredas e orquídeas como a Constancia cipoense só ocorre em campos rupestres.
A diversidade biológica, especificamente a flora do Cerrado, como a brasileira de modo geral, é praticamente ignorada nos livros didáticos, enquanto a flora domesticada é dominante. Nenhuma espécie vegetal brasileira, muito menos nativa dos Cerrados, é apresentada, considerando-se as possibilidades de seu uso econômico, por exemplo, aspectos bastante explorado nas pesquisas atuais sobre os Cerrados. Mas Bertran nos mostra que a prática da inclusão de frutas plantadas de procedências diversas no Cerrado vem desde o século XIX:
“E importou-se de tudo, do mundo inteiro. Em 1801, o governador João Manoel de Menezes lançou os fundamentos de um Horto Botânico, para onde trouxe, provenientes da Índia, mudas de canela e sementes de manga, acondicionadas em caixas com areia. Trouxe mais consigo de Lisboa, por determinação real, exemplares de um livro chamado O Fazendeiro do Brasil, para ser vendido em Goiás. Os vilaboenses devem ter ficado basbaques ao verem canoas com livros na importante frota que trouxe o governador – viagem custosa e perigosa – desde Belém do Pará, rio Araguaia acima. À boca pequena deviam chamá-lo “governador dos livros”, se bem interpretamos a malícia cabocla”.
É claro que não somos ingênuos de acreditar que o meio ambiente deva ser intocável pelos seres humanos, afinal, o “meio ambiente em movimento, antrópico e depois anantrópico, numa lição prática de ecohistória” faz parte da história da humanidade, daí a necessidade de compreendermos a situação atual da degradação ambiental a partir da complexidade sócio-cultural-ambiental brasileira que é definida não somente pelos momentos e as formas de ocupação, como também pelos elementos ambientais presentes nas regiões em que se desenvolveram:

“Não há um Brasil, não há dois Brasis, como gostariam de crer os dualistas. Há possivelmente, segundo nossa consciência, algo como umas duas ou três dúzias de Brasis, formando o movimento difuso de nacionalidade. Somos um povo complexo e diversificado, habitando nichos ecológicos diferenciados em que se processam etnografias plurais, com heterogêneas composições de tempo histórico e de sedimentos inter-raciais, sócio-econômicos, culturais… Esse bom calçamento, com robustas suspensões independentes, talvez explique o Brasil ser maior que o abismo, ao atravessar o caminho ruim dos anos de crise. Eis que, apesar dos aviões que levam e trazem; apesar dos anódinos ambientes climatizados e da televisão, que com compulsiva esquizofrenia traz-nos o horror e o excesso do mundo à mesa; apesar de tudo que nos empurra para a globalização do gênero humano, há um outro movimento que nos conduz ao inverso, que nos regionaliza, ambienta-nos, remete-nos cada vez mais ao nicho aprazível de nossa ecologia mínima” (Bertran, 2000:17).
O laço com o sentido de regionalidade que constitui um dos elementos da noção de pertencimento entre os seres humanos surge como ponto de partida para a concepção de eco-história. Confirma essa ideia a afirmação de que “quanto mais o homem escapa e sobrepõe-se à natureza de si próprio e do ecossistema em que vive, mais condenado fica a reencontrar-se – a si e ao seu ambiente” (Bertran, 2000:17).

Concluindo

Inegavelmente a proposta de Paulo Bertrán nos mostra que “temos muito a aprender sobre o metabolismo das idéias, das ilusões, da confusa natureza humana. Despoluír-se para enxergar o que existe. Despoluir-se para a experiência imediata. Para ver o neto ou o bisneto migrando para as estrelas. Ou para não ver bisneto nenhum. Antigamente chamava-se a isso heurística do discurso. Hoje é despoluição mesmo, se é que resolve”. Assim sendo, pensamos que devemos escrever livros didáticos que permitam aos estudantes ter um outro olhar sobre a nossa história, especialmente, a história do Distrito Federal, a partir de um campo novo, difuso e “estranho”: a Eco-História, ou História Ecológica. Como escreveu o nosso mestre Bertrán:

“Eco-história não é panacéia, mas forma de abordagem, forma de assalto que pressupõe a compreensão abrangente da Mãe-Terra e dos filhos homens, com seus resultados, alguns salutares, outros iníquos sociológica, econômica e ecologicamente. De tudo isto tiramos uma certeza. Não saber mais o que é Centro-Oeste ou Brasil, por exemplo. Mas saber o que é o cerrado e seus filhos, a eco-história humana das savanas brasileiras”.

Referências bibliográficas:
– Leonardi, Victor. Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil, Brasília: EdU-nB/ Paralelo 15, 1996.
– Martins, Marcos Lobato. História e Meio Ambiente. São Paulo: Annablume; Faculdades Pedro Leopoldo. 2007.

Eco-história no Distrito Federal

Para falar sobre a eco-história do DF, nossa referência é o Paulo Bertran que procurou sustentar a ideia de que o Cerrado foi o locus de origem de uma sociedade ecologicamente diferenciada. É, enfim, a história da formação dessa peculiar sociedade que se desenvolveu nos cerrados do Planalto Central de altitude.

“Bertran está atento aos diversos aspectos da história do Planalto. Ele se ocupa da geografia histórica e da formação do território, do ordenamento espacial e da distribuição das sesmarias, das variações das atividades econômicas entre o auge e o declínio da mineração. E também confere grande importância a aspectos relacionados às expressões culturais e, por assim dizer, ao modo de ser da peculiar sociedade que se constituiu na região, especialmente durante o seu período de maior isolamento. Ele relata, por exemplo, a ocorrer no arraial de Santa Luzia, festas e celebrações religiosas e encenações de óperas italianas. Algumas dessas celebrações, compostas por expressões da cultura erudita, ocorriam por ocasião da chegada de autoridades como o governador da capitania, representante direto da coroa portuguesa, e revelam o alcance dos rituais próprios da corte europeia nos mais longínquos domínios lusos, onde a colonização se expandia pela violência. Era uma cultura de sertão, “que surgia no limiar da escrita, nasceu entre a fé e a blasfêmia, entre cartas régias e contrabandistas, entre oficiais de justiça e capangas””.

Fonte: Costa, Kelerson. Resenha. Sustentabilidade em Debate – Brasília, v. 3, n. 1, p. 165-174, jan/jun 2012.

Memória Viva: a eco-história do Planalto Central

A série Memória Viva é composta de 5 capítulos e retrata a história do Planalto Central desde os primeiros vestígios da ocupação humana até os dias atuais.
Compartilhem!

Lista dos vídeos com seus respectivos links de acesso:
• Capítulo 01 (Audiodescrição)
https://www.youtube.com/watch?v=gfluAS_Sp3Q&t=245s
• Capítulo 02 (Audiodescrição)
https://www.youtube.com/watch?v=TEQMjDbU11o&t=25s
• Capítulo 03 (Audiodescrição)
https://www.youtube.com/watch?v=k1Wo5o2sYNU&t=60s
• Capítulo 04 (Audiodescrição)
https://www.youtube.com/watch?v=vRptaZ8fz04&t=84s
• Capítulo 05 (Audiodescrição)
https://www.youtube.com/watch?v=z6zRCDl7Hao

Realizada pelo Instituto Latinoamerica e produzida pela CenaUm Produções, a série mostrará a ecologia do Cerrado, e vai dar visibilidade aos primeiros habitantes da região do entorno de Brasília: grupos pré-históricos, indígenas, quilombolas, bandeirantes paulistas, criadores de gado, que são a base do povo e da cultura do Planalto Central do Brasil. E encerra mostrando o século 21 e a sexagenária Brasília.

A série mostrará também o patrimônio histórico, arquitetônico, artístico e cultural que se formou em quase três séculos de ocupação. E como vivem as cidades próximas à capital da república, o contemporâneo, a relação do presente com o passado, a modernidade. Por fim, a constatação documentada pela primeira vez em forma de vídeo de que, ao ser construída, Brasília não se ergueu em uma região deserta. No espaço físico central do País, havia séculos de história, de cultura e conflitos, de realizações e vida. A esse passado o homem acrescentou a beleza e originalidade da capital, primeira cidade moderna, do século 20, reconhecida como patrimônio cultural da humanidade. Lançamento previsto para setembro de 2020.

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Museus no Cerrado

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