Kaiowá

A criação da futura terra, yvyrã

Para os Kaiowá, existiu uma primeira terra e uma primeira geração que povoou essa terra. O primeiro casal da primeira geração era composto por Xiru Yryvera e Ha’i. O nome do homem significava “brilho das águas”, e o de sua esposa, “mãe”. O casal teve três filhas: Hachã Rusu, Hachã Mirĩ, Hachã Mirĩ Pahagwe. A filha mais velha do casal se casou com Jakaira Gwasu, o Grande Jakairá, dono dos alimentos, com quem teve duas filhas: Hachã Rusu, a mais velha, e Hachã Mirĩ, a menor. Naquela época, não existia ainda a terra. Os dois casais e suas famílias viviam em lugares diferentes, flutuando no ar. Então, Jakaira Gwasu tentou criar a futura terra.  

 

Sobre a criação da futura terra: 

1 – No lugar onde vivia com a sua família, Jakaira Gwasu pegou na sua mão um pouco de pó da terra, o soprou e a futura terra começou a se esticar. Para viver sobre ela, ele a esticou, para ter um lugar onde por seus pés, ele tentou fazer a terra. Mas a futura terra não era totalmente firme, era uma camada muito fininha e fofa.  

2 – Então ele misturou pedra com a terra e pisou novamente sobre a futura terra e percebeu que ela ainda não estava bem dura e firme. Então colocou no meio da futura terra um pouco de terra roxa e encimou quatro camadas. Depois de esticar esta nova massa, ele pisou novamente sobre a futura terra e percebeu, com os demais Seres que tinham ido observar sua criação, que a futura terra já estava bem dura e firme.  

3 – Depois de a terra ter sido esticada, chegaram o grande Kandire, o futuro Sol e a futura Lua ao local, para levantar as futuras árvores e os futuros bosques. No corpo das árvores, eles levantaram todo tipo de mel, somente o mel que dá na terra eles não colocaram nas árvores, deixaram-no pelo chão.  

4 – Então os seres chamados Mba’ejára Tetirõ quiseram se tornar o futuro Sol, a futura Lua, a futura Estrela d’alva, a futura Plêiade. Eles, porém, não conseguiram e se transformaram em todo tipo de coisas estranhas.  

5 – Então disse o grande Verandyju para o futuro verdadeiro sol e a futura verdadeira lua: “Por que eles não participam do concurso?”. Ele já sabia que eles já estavam destinados a isso.  

6 – Prontamente eles voltaram do lugar onde estavam pescando. Vieram com seu Jasuka [transportados na sua própria luz, no seu próprio veículo]. Tentaram o concurso e se tornaram o sol e a lua. Um ilumina de dia e outro de noite. 

 

 

Fonte:

CHAMORRO, G. KAIOWA MOMBE’UPY NHEMOHEMBYPY REHEGWA – RELATOS DA COSMOGONIA KAIOWÁ: IMPLICAÇÕES NO CAMPO LINGUÍSTICO E NA PRODUÇÃO DA VIDA SOCIAL. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 10, n. 1, jan./jun. 2016. p. 14-15. 

 

Yvu rehegwa ou a história de Xiru Yryvera e Xiru Jakaira Gwasu  

Como já foi visto, inicialmente existiu uma primeira geração de acontecimentos. O Grande Xiru Jakaira tentou várias vezes fazer a terra e finalmente conseguiu. Nessa terra havia animais, plantas, bosques e vários seres originais, mas ainda não havia humanos. Essa terra vai ser destruída no dilúvio. Segue o relato mítico.  

 

Sobre o dilúvio 

1 – Jakaira Gwasu está cantando com seu filho, como se não soubesse que Yryvera (dono das águas) tinha anunciado que haveria um dilúvio.  

2 – Jakaira Gwasu já está preocupado com o anúncio do dilúvio.  

3 – Guyratĩ (garça), que então era uma pessoa, chegou e mentiu. Disse que não haveria dilúvio. Assim, Gwyratĩ deu origem à mentira.  

4 – O genro, porém, contou a pura verdade para o sogro, que as águas iam chegar.  5 – Os familiares do grande Jakaira estão fazendo uma grande canoa para se salvarem do dilúvio. 6 – Os filhos do grande Jakaira estão quase terminando de fazer a canoa.  

7 – Um netinho disse para o grande Jakaira: “como vamos cuidar da menina [pensando que ela logo iria se tornar moça]?”. O menino estava preocupado com a tia, sua segunda mãe, pois ela logo iria menstruar.  

8 – O grande Jakaira respondeu para seu neto que sua pequena tia ficaria debaixo de uma grande panela, fora do barco. Essa panela se transformou na casa grande kaiowá. Ali ela ficou para cuidar da água e dos animais aquáticos, por isso ela se chama Jari(a) Rysapy, uma Jari toda molhada, cheia de orvalho.  

9 – O grande Jakaira deixou para sua filha Jari(a) Rysapy boas palavras, para que ela evite que os animais do mar se matem à toa. 

10 – As mulheres levam mantimento para serem comidos dentro da arca.  

11 – Os ajudantes do grande Jakaira colocaram na grande canoa um casal de todo o tipo de animal. Também os filhos e as filhas de Jakaira entraram na arca.  

12 – Quando seus familiares e todos os animais já estavam na arca, o grande Jakaira foi olhar se as águas já estavam chegando.  

13 – O filho e a filha (Jari(a) Ro’ysarã) do grande Jakaira viram a água chegando na direção deles e foram avisar seus familiares.  

14 – Um neto do grande Jakaira disse que estava entrando água na canoa, mas ele estava só brincando. Jakaira também segurou seu neto e disse: “Não anuncie isso, pode cumprir-se o que diz, a água pode entrar na grande canoa”  

15 – Agora já se levanta uma onda gigante. Vem fazendo muito barulho.  

16 – Os familiares do grande Jakaira aclamam a grande canoa, que começou a se mover.  

17 – Quando a canoa chegou no topo de um pé de jataí, os familiares de Jakaira amarraram a arca no jataí.  

18 – O lugar onde brotam as folhas do jataí se transformou numa grande casa kaiowá para os familiares de Jakaira.  

19 – Esse lugar transformou-se numa grande casa e terreiro kaiowá. Ali todos viveram por quatro anos.  

20 – Quando completou-se um ano, a pessoa mais sabida jogou para baixo um caroço grande de jataí e disse para as pessoas da sua idade: “Ainda não secou a água, temos que ficar aqui em cima por mais um ano”.  

21 – Depois de um ano, a mesma pessoa jogou novamente um caroço de jataí e disse outra vez: “Ainda não secou a água, temos que ficar aqui em cima por mais um ano”. E assim ele voltou a jogar um caroço de jataí no terceiro e no quarto ano.  

22 – Depois de quatro anos, a água secou e o grande Jakaira desceu do pé de jataí para a terra com seus familiares, com a grande casa, com os animais e com o terreiro.  

 

Fonte:

CHAMORRO, G. KAIOWA MOMBE’UPY NHEMOHEMBYPY REHEGWA – RELATOS DA COSMOGONIA KAIOWÁ: IMPLICAÇÕES NO CAMPO LINGUÍSTICO E NA PRODUÇÃO DA VIDA SOCIAL. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 10, n. 1, jan./jun. 2016. p. 17-19.

 

O mito do surgimento da Jari(a) Ro’ysã, Kaja’a Rembypy: 

1 – A filha mais velha de Yryvera e Ha’i foi chamada de Jari(a) Rysapy. Ela foi deixada para viver no meio das águas.  

2 – Sua irmã mais nova, no entanto, foi chamada de Jari(a) Ro’ysã. Ela também foi destinada para ser protetora dos seres aquáticos. Naquele tempo, ela tinha se casado secretamente com uma Anta. Seu pai e sua mãe já perceberam isso, que sua filha estava namorando um animal.  

3 – Jari(a) Ro’ysã pegava e assava batata doce, colhia milho e fazia dele chicha, depois levava esses alimentos para seu esposo Anta, no mato.  

4 – Quando chegava na mata, ela tocava com uma madeira o pé da palmeira [pindó], o que produzia um som muito forte.  

5 – Mal chegava no lugar onde vivia o Mborevi, a filha de Nhanderu gwasu lhe dava chicha e batata assada. Assim a teve por muito tempo a anta.  

6 – A Anta era pura gente para a Futura Jari(a) Ro’ysarã. Para seu pai e sua mãe, porém, ele era bicho do mato.  

7 – A Futura Jari(a) Ro’ysã amava muito a Anta e a Anta também amava a Futura Jari(a) Ro’ysã como se fosse gente, pessoa.  

8 – A Mãe e o Pai se entristeceram muito porque sua filha ficou encantada pela Anta. Certa vez, o irmão mais novo da futura Jari(a) Ro’ysã ouviu a conversa de seu pai e de sua mãe a respeito e se perguntou o que poderia fazer para resolver a situação.  

9 – Certo dia, enquanto a futura Jari(a) Ro’ysã saiu novamente para pegar batata doce e pilar milho para seu esposo Anta, seu irmão foi para o mato enganar a Anta. Chegando lá, ele tocou o pé de pindó. A Anta veio correndo, achando que tinha chegado a futura Jari(a) Ro’ysã.  

10 – Ao ver a Anta, o irmão da futura Jari(a) Ro’ysã o flechou e o matou. Ele picou o corpo de sua presa às escondidas, para que sua irmã não visse o que estava acontecendo.  

11 – Enquanto isso, Jari(a) Ro’ysarã já tinha feito a comida para seu esposo Anta e foi levar-lhe na mata.  

12 – Ao chegar na mata, ela tocou em vão o pé da palmeira [pindó]. Seu esposo não saiu.  20

13 – Ela voltou para casa e entrou no quarto para deitar na rede, no quarto onde estava dependurado o corpo de seu esposo partido em pedaços. Ao deitar-se pingou nela o sangue do pênis de seu esposo, que seu irmão pendurara sobre a rede.  

14 – Nesse instante, Jari(a) Ro’ysã percebeu que seu esposo tinha sido morto. Ela caiu em profunda tristeza e se enfezou. Por isso ela partiu para ser protetora dos seres frios. Ela pegou o cesto típico kaiowá e foi se banhar. Sua mãe disse então para sua outra filha menor, Miĩ : “Vá correndo atrás da tua irmã mais velha, que saiu para tomar banho”.  

15 – Miĩ saiu correndo, para ver o que sua irmã estava fazendo. Ao chegar, ela viu que sua irmã a chamava dizendo: “Vem, vamos nos banhar”.  

16 – Miĩ tirou o enfeite da sua cabeça e entrou na água para se banhar com sua irmã. Mas logo ficou com frio e quis sair. Sua irmã não ouviu a reclamação e começou a bater na água dizendo: “Para ser dona-protetora das águas sou eu”. Ao ouvir isto, Miĩ saiu da água e chamou novamente sua irmã e percebeu que a mesma era destinada para as águas.  

17 – A água começou a se juntar e a crescer em torno da futura Jari(a) Ro’ysã, que disse para Miĩ : “Vai embora, eu vou ficar para ser dona-protetora dos seres frios”. Miĩ voltou a olhar e viu que as águas quase alcançavam a cintura de sua irmã.  

18 – Ao chegar em casa contou para seu pai e sua mãe que sua irmã ficou para ser a protetora dos seres frios. Nosso Grande Pai e Nossa Mãe, porém, já sabiam que isso iria acontecer com sua filha.  

19 – De manhã Nosso Grande Pai foi aconselhar sua filha e viu que a água tinha crescido muito. Esse lugar se tornou uma casa grande que pode durar até o fim dos tempos. Nosso Pai então colocou boas palavras na cabeça de sua filha, para que os seres aquáticos não matem à toa os seres terrenos da segunda geração. Ele disse:  

20 – “Você vai ficar como um ser de confiança, não coloque nada de ruim na sua cabeça, para que as águas e os animais carnívoros das águas não nos façam sofrer, para que os seres terrenos não se deparem à toa com doenças e para que não tenham maus presságios”.  

21 – Assim, Nosso Pai disse muitas boas coisas para sua filha, que recebeu o nome de Jari(a) Ro’ysã, das pessoas que enxergam longe, hechakáry. Ela foi destinada a viver nas águas, ela que tinha se enfezado por causa da Anta. Isso aconteceu para dar princípio ao que pode acontecer [conosco ainda hoje].  


Fonte:

CHAMORRO, G. KAIOWA MOMBE’UPY NHEMOHEMBYPY REHEGWA – RELATOS DA COSMOGONIA KAIOWÁ: IMPLICAÇÕES NO CAMPO LINGUÍSTICO E NA PRODUÇÃO DA VIDA SOCIAL. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 10, n. 1, jan./jun. 2016. p. 13-26. 

Kaiowa

Artesã guarani kaiowa. Foto: Egon Shaden, 1949.

Origem do nome

O guarani-kaiowa, como são conhecidos na literatura antropológica brasileira, de bom grado, como informa Cadogan (1959), aceitariam a designação de paĩ, título empregado pelos deuses habitantes do paraíso ao dirigir-lhes a palavra, mas o nome que melhor lhes corresponde é o de tavyterã ou paĩ-tavyterã,que significa “habitante do povo [aldeia] da verdadeira terra futura ” (távy-yvy-ete-rã). Os ñandeva referem-se a estes paĩ-kaiowa como tembekuára (orifício labial) por seu costume de perfurar o lábio inferior dos homens jovens onde se insere pequeno bodoque de resina em cerimônia de iniciação.

O nome Kaiowa deve decorrer do termo KA’A O GUA, ou seja, os que pertencem à floresta alta,densa, o que é indicado pelo sufixo “o” (grande), referindo-se aos atuais Guarani-Kaiowa ou paĩ-tavyterã. Haveria, desta forma, uma diferenciação em relação ao termo KA’A GUA, os que são da floresta sem,necessariamente, que seja densa ou alta, categoria em que se incluiriam os atuais Guarani-Mbya.

Localização do povo

Habitando a região sul do Mato Grosso do Sul, os Kaiowa distribuem suas aldeias por uma área que se estende até os rios Apa, Dourados e Ivinhema, ao norte, indo, rumo sul, até a serra de Mbarakaju e os afluentes do rio Jejui, no Paraguai, alcançando aproximadamente 100 Km em sua extensão leste-oeste, indo também a cerca de 100 Km de ambos os lados da cordilheira do Amambaí (que compõe a linha fronteiriça Paraguai-Brasil), inclusive todos os afluentes dos rios Apa, Dourados, Ivinhema, Amambai e a margem esquerda do Rio Iguatemi, que limita o sul do território Kaiowa e o norte do território Ñandeva, além dos rios Aquidabán (Mberyvo), Ypane, Arroyo, Guasu, Aguaray e Itanarã do lado Paraguaio, alcançando perto de 40 mil Km2. O território Kaiowa ao norte faz fronteira com os Terena, e ao leste e sul com os Guarani Mbya e com os Guarani Ñandeva (v. Meliá, 1986: 218). Algumas famílias kaiowa também vivem, atualmente, em aldeias próximas às Mbya no litoral do Espírito Santo e Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

Rubem Ferreira Thomaz de Almeida; Fabio Mura. Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guarani_Kaiow%C3%A1>. Acesso em: 07 de ago. de 2020.

 

Equipe de edição da Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guarani>. Acesso em: 07 de ago. de 2020.

 

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas indígenas brasileiras. Brasília, DF: Laboratório de Línguas Indígenas da UnB, 2013. 29p. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/lali/PDF/L%C3%ADnguas_indigenas_brasiliras_RODRIGUES,Aryon_Dall%C2%B4Igna.pdf>. Acesso em: 16 de ago. de 2020. 

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