Dona Flor – Raizeira e Parteira (Povoado do Moinho – Alto Paraíso de Goiás)
“Dona Flor do Moinho”, como é mais conhecida, aos 82 anos não dá o braço a torcer! Continua na peleja do trabalho na roça, no feitio de remédios caseiros, de açúcar mascavo, rapadura, farinha, sabão de tingui, entre tantas outras coisas, além de sempre estar ensinando à quem à ela procura pra aprender.
Fonte: Tres Luas Etnos
Disponível em: Quintal das RAÍZES: Dona Flor – Raizeira e Parteira (Povoado de Moinho – Alto Paraíso de Goiás)
Dona Flor, comunidade do Moinho, Alto Paraíso de Goiás
“Eu nasci em Santa Rita, é aqui no Moinho, distância pouca, é quilombo mesmo. Me alembro assim que a gente cresceu um pouco lá. Eu não nasci de parteira, eu nasci sozinha, eu não esperei a parteira. Minha mãe ganhou meu primeiro irmão, ela sofreu muito pra ter. Ela tava com 15 anos, e no mesmo ano que ela casou ela engravidou. Então ela esperava que ia sofrer o mesmo tanto de mim, eu não vim ao mundo pra botar ninguém pra sofrer. E aí ela mandou o meu pai chamar a parteira, que chamava Maria do Espírito Santo. E ele demorou a chegar com essa parteira, quando ele chegou eu já tinha chegado. Pelo que ela disse, eu nasci assim 6 horas da tarde. Eu sou a segunda de 13 irmãos.
Minha vó me criou até os meus 9 anos. Eu tinha um pai muito ruim pra mim, ele me batia, era racista, me xingava, e minha vó era tipo eu assim, e ela era sozinha, não tinha marido, os filhos já tava tudo criado. Então ela gostava de ir pros mato, minha vó era índia, e aí eu falava com minha mãe: — Mamãe, deixa eu ir com vovó, ela vai sozinha. — Não, cê precisa ficar aqui pra olhar. — Não, não vou olhar mininu não, eu vou mais vovó. A hora que eu chegar, eu olho mininu.
E ia embora pra lá, e nós ia pro mato. Eu sou do mato por causa de minha vó. Ela assim, ela não mexia com raiz, ela mexia com as alimentação do cerrado, gravatá, pegava pequi, pegava baru, pegava mangaba, panhava cagaita, panhava um que eles chama de garirobinha, e era assim, jatobá ela panhava, que tem dois tipo de jatobá, né? Tinha o jatobá que dava no tempo do caju, que é o jatobá do campo, e tem o da montanha, que minha vó falava, ela falava pra gente jatobazão.
Sua sabedoria
Só pra fala com o’cês que eu não estudei, sabe que eu sou uma boba mas a natureza ensina. Depende de você respeita a natureza e você ser uma pessoa humilde …
Os rios enche na lua cheia. A lua tem tudo a vê com nosso cabelo, nossa menstruação, com o movimento du bebê na barriga, tudo tem a vê. É muito claro. Tem gente que fala que a lua não tem a vê com isso não… pra plantá, pra colhê, pra semeá, pra fazê viveiro, pra podá, tudo a lua manda. Se você poda um pé de manga na lua minguante ela vai brotá na lua nova, e aí ela vai crescê na crescente, a tendência dela é não morrê nunca. Por isso que eu digo pra vocês: a natureza ela é completa, agora Deus deixô cada um pra saber decidir o que a natureza é. Dona Flor
Então, é por isso que eu disse pra cêis, pra cêis aprendê com a natureza cêis tem que tirá o dinheiro da frente, tem que botá Deus na frente. Porque o dinheiro acaba, o que cêis aprende num acaba, só acaba quando cêis morrê. E não caba. Porque eu tô fazeno isso aqui com cêis, é na esperança de não acabá. Porque eu vô e cêis vão ficá. E cêis tá me ouvino e cêis tão gravano e cêis tá veno o que eu tô falano. Isso que eu tô fazeno aqui não pode acabá. Isso chama tradição. Falá de planta, falá de árvore, falá de amor… falá de tudo isso, é tradição que Deus deixô. Então, acredita que é a natureza que cria nós, num é o dinhêro não. Fica na consciência de quem qué aprendê. Se eles vê que dá lucro, que eles qué aprendê, eles me dá alguma coisa, que eles também tem consciência, que eles também é fi de Deus. Agora se eles vê que num vale nada, pra mim é um prazer, eu quero deixá o meu conhecimento no ar, no mundo. Porque eu sei que tudo isso vai ajudá as pessoa tudo. Tudo isso que eu tô falano aqui, quem tá ouvindo, quem vai ouví um dia, vai chegá na porta deles, vai chegá, chegô na minha, eu tô distribuino. Num é igual uma semente? Nós ganha 2 caroço de milho, nós planta esses 2 caroço de milho, eles dá duas espiga. Uma espiga de mí tem quantos caroço? Aí cê planta, pega aquilo que ele produziu, cês colhe os caroço melhó e planta. Quantas espiga num vai dá daqui um ano? É o que eu tô fazeno aqui. Eu tô semeano uma semente. Agora quem vai colhê ela é cêis, num é eu. E vai passá de passo a passo. “Tá veno esse carocinho aqui de milho?! Esse carocinho de milho foi Dona Flor que me deu. Vô tirá semente.” E vai plantano. Vai plantano, vai mudano, mudano, daqui uns tempo, quantas mulher formada num tem aí? Aí pronto, depende cês querê. Cês tem é que exercê o que cês aprende, tem que fazê, junta um grupo de mulher desse e continuá fazendo o que eu tô fazendo. Porque aí as otra vão aprendeno e nunca a tradição vai acabá. Porque uns vai morreno, otrus vai nasceno, otrus vai aprendeno otrus vai ensinano. E a vida vai cresceno. Agora quando cê aprende e cê não pratica, não compensa. Cê perdeu seu tempo aqui me ouvino e depois chega: “Ah, eu esqueci tudo. Num sei.” Tenta. Não pode esquecê não”.
Livro: O partejar e a farmacopéia de Dona Flor: histórias e ensinamentos de uma mestra quilombola / Florentina Pereira Santos; organizadora Juliana Floriano Toledo Watson. Brasília, DF: Avá Editora, 2022.
Dona Flor do Moinho deixou por escrito para que fosse colocado em sua lápide: “Quando eu morrer, não quero choro. Quero todo mundo alegre. Já vivi o que tinha que viver. Já fiz o que tinha que fazer. Cumpri minha missão aqui na terra. Na minha morte, a única coisa que quero é perdão e água. Porque gerei na água, vivi minha vida toda na água e não quero morrer com sede”.
Veja o documentário Flor do Moinho, 2016
Documentário que dá protagonismo a Dona Flor (Florentina Pereira dos Santos), raizeira e parteira que vive no Povoado do Moinho, próximo a Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, Goiás, constituído de entrevistas com a personagem, seus familiares e moradores da comunidade, e de imagens do local, situado em um vale maravilhoso com sua natureza quase intocada. Dona Flor exemplifica a mulher sábia do interior do Brasil, matriz e fonte de uma riqueza sociocultural que não se pode perder, cuja experiência no manuseio das plantas e na execução de partos tornaram-na uma referência no Brasil central.
Produção Executiva: Flor dos Santos, Luz & Filmes e Decifra TV WEB
Direção: Érika Bauer
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LZOmtBp3J2U
Conhecimento de Dona Flor sistematizado
Planta | Indicação | Modo de preparo |
Açafrão | Catapora, sarampo, inflamação no osso e tendão, cisto, febre, eleva imunidade e tempero. | Chá da raiz seca e moída Sarampo: chá composto com sabugueiro e folha de laranja para passar a febre. |
Alfazema | Insônia, enema, incenso e perfurme. | Efusão, folhas e flor desidratado |
Algodão | Anti-inflamatório, pressão baixa, estimula as contrações do parto, cólica, candidíase, inflamação no útero, períneo no pós-parto, mamilo rachado e garrafada da mulher. | Coloca as folhas na água quente e espreme, coloque 1 pitada de sal. Estimular as contrações do parto: 3 dedos de raiz, ferve 5 min., 1 pitada de sal. |
Alecrim do campo | Cólica menstrual, afrodisíaco, sangramento e solta intestino. | Raiz e folha. Chá da folha solta o intestino. |
Amor do campo | Afrodisíaco, enema, | Chá da folha ou raiz. |
garrafada, hemorroida, cicatrizante, constipação intestinal, rins, cólicas de bebê e assadura. | Cólicas de bebê: chá para a mãe ou para o bebê. Assadura: banho. | |
Angico | Infecção urinária, cicatrizante, anemia e doenças renais. | Colocar a casca em efusão de água fria. Se estiver grávida, tomar apenas a partir do 2º filho e após 3 meses. |
Aroeira | Chá da folha para tosse, casca para garrafada da mulher e banho de acento, pós-parto, candidíase, cicatrizante e tireoide | Folha, casca e resina. Tireoide: tomar água da resina 1 vez ao dia até desaparecer o sintoma. Pós-parto e candidíase: banho de acento. |
Arruda | Cólicas no pós-parto, cólica menstrual, limpa o útero, coração e travesseiro. | Chá 1 vez por dia. Semente para o coração Cólica menstrual: Composto com alho, imburana, mastruz e noz moscada. |
Artemísia (vento livre) | Teste de gravidez, cólica menstrual, dor no estômago, cólica intestinal, abortiva, prisão de ventre e enema. | Folha e flor. Cólica intestinal em bebê: chá da flor. |
Barbatimão | Herpes, cicatrizante, períneo, útero e garrafada da mulher. | Herpes: lavar a ferida com barbatimão. Banho de acento para cicatrizar o períneo pós parto. |
Baunilha | Licor, vinho e bolo. | Planta poderosa. |
Burere(mamacadela, fruta de cera) | Depurativo do sangue, rins, reumatismo, anti- inflamatório, cicatrizantes, alergia e DST | Raiz, fruto e folha. |
Cagaita | Fruta, alimento, picolé, suco, geleia, sorvete, vinagre e rins. | Folhas chá para cálculo renal. Vinagre: coloca o pó da entrecasca no caldo de cana por 1 semana no sol. |
Algodão/ barbatimão | Candidíase | Banho de assento |
Canela | Enjoo, garrafada da mulher, resguardo | Abortiva |
Canela de Ema | HIV, rins, hérnia umbilical e inguinal e banho pós-parto. | Folha e flor. |
Cânfora do Campo | Útero, ovário, depurativo do sangue, anti- inflamatório, cicatrizante, alergia e garrafada da mulher. | Chá e banho da folha |
Capim Caboclo | Útero, ovário, depurativo do sangue, anti- inflamatório, cicatrizante, alergia e garrafada da mulher. | Chá ou banho. |
Cinco Folhas | Tosse, uso veterinário: para cachorro que está perdendo o pelo. | Casca. |
Chapéu de Coro | Insônia, cálculo renal, infecção urinária, diurético, ovário, reumatismo, depurativo do sangue e pressão alta. | Chá da folha. Secar a folha ao sol. |
Copaíba | Anti-inflamatório, garganta, tosse, diurético, DST, regulador menstrual, curativo para umbigo de bebê, garrafada da mulher e xarope. | Óleo, chá da casca para banhar machucado, pingar 3 gotas direto na garganta, 1 colher de sobremesa para constipação intestinal. Passar no peito da mãe, pingar umas |
Cravinha (Mama veado) | Febre, bronquite, asma, coqueluche. | Raiz. |
Douradinha | Útero, infecção urinária, rins, próstata, insônia, calmante e pressão alta. | Chá da folha e raiz, garrafada. |
Enxofrinho | Picada de cobra. | Leite da raiz, uso imediato. |
Erva de Bicho | Infecção urinária, vermífugo, enema e garrafada da mulher. | Folhas e flor, tomar o chá ou banho. |
Erva Cidreira | Pressão alta, enema, banho em recém-nascido e travesseiro. | Tomar o chá ou banho. |
Erva de São Caetano | Anticoncepcional, verme, queda de cabelo. | Tomar o suco da folha fresca. Tomar logo após a relação. |
Favela | Calmante e insônia | Folhas para travesseiro e o tronco para cortiça |
Febre | Flor de sabugueiro, marcela e marcelinha. | Inalação de chá de marcela |
Guaco | Gripe, pulmão, expectorante, depressão, tranquilizante e travesseiro. | Tomar o chá. |
Guiné do Mato | DST, dente, veneno de cobra, trombose e garrafada. | Emplasto, coloca na ferida. |
Hortelã | Resguardo, gazes, prisão de ventre de bebê e gravidez | Tomar o chá. |
Imburana | Dor, cólica menstrual, | Cólica menstrual: chá |
prisão de ventre, pós-parto e rapé. | composto com alho, mastruz, arruda e noz moscada. | |
Ipê Roxo | Anemia, anti-inflamatório, cálcio, fortificante e garrafada da mulher | Infusão da casca. |
Jatobá | Tônico, ferro, expectorante, anemia, cálcio, pneumonia, imunidade, colesterol e garrafada da mulher. | Alimento: biscoito, pão de queijo, picolé, sorvete, minguau, vitamina, farinha e tapioca. |
Língua de Tucano | Dor de garganta, amidalite, dor de dente | Chá para gargarejo. |
Fonte: FEITOSA, Eliana Aparecida Silva Santos. Identidade e cultura: estudo etnogeográfico da comunidade tradicional do MOINHO em Alto Paraíso de Goiás. 2017. xviii, 160 f., il. Dissertação (Mestrado em Geografia)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017.