Quilombolas
São grupos étnico-raciais segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotadas de relações territoriais específicas com presunção de ancestralidade negra relacionada à resistência à opressão histórica.
Os quilombos, como símbolo expressivo dessa resistência, entram pelo século XXI e apresentam-se como um movimento que, a partir de seus critérios de pertença, trilham metas comuns em busca da garantia de seus direitos. O Conceito de Quilombo ganha novo marco jurídico após a Constituição de 1988 e esse fato é determinante para a garantia do direito à terra a essas comunidades. É também um fator fundamental para o estabelecimento e organização do movimento quilombola em nível nacional, que, a partir da construção de sua identidade étnica reivindica o seu direito à terra. São poucas as comunidades que alcançaram esse direito. Das mais de três mil comunidades quilombolas presentes nas cinco regiões do país, pouco mais de cem possuem o título.
A população quilombola do país é de 1.327.802 pessoas, ou 0,65% do total de habitantes. Foram identificados 473.970 domicílios onde residia pelo menos uma pessoa quilombola, espalhados por 1.696 municípios brasileiros. O Nordeste concentra 68,19% (ou 905.415 pessoas) do total de quilombolas do país. O Censo também mostrou que os Territórios Quilombolas oficialmente delimitados abrigam 203.518 pessoas, sendo 167.202 quilombolas, ou 12,6% do total de quilombolas do país. Destaca-se, ainda, que apenas 4,3% da população quilombola reside em territórios já titulados no processo de regularização fundiária.
Dos 5.568 municípios do Brasil, 1.696 possuem população quilombola. No Cerrado, Januária/MG é a cidade com a maior quantidade absoluta de população quilombola com 15.000 mil pessoas; já em relação a proporção de quilombolas na população total do município, destacam-se, Berilo/MG e Cavalcante/GO.
Foram identificados 494 Territórios Quilombolas oficialmente delimitados, presentes em 24 estados e no Distrito Federal, que abrigam 203.518 pessoas, sendo 167.202 quilombolas (82,16%) e 36.316 (21,72%) não quilombolas. Assim, 12,6% dos quilombolas do país residiam em territórios oficialmente delimitados e 87,4% encontravam-se fora de áreas formalmente delimitadas e reconhecidas.
A população quilombola que reside em territórios titulados representa apenas 4,3% do total de quilombolas do país. Assim, 95,67% dessa população (ou 1.270.360 pessoas) não obtiveram os títulos definitivos de suas terras no processo formal de regularização fundiária. As maiores proporções de quilombolas em territórios titulados foram observadas no Pará (28,09%), Amapá (14.09%) e Goiás (11,61%).
(R)EXISTÊNCIAS NO CERRADO: Cultura alimentar de comunidades quilombolas do Goiás
O presente artigo expõe dados e análises a partir de investigação preliminar de práticas e hábitos alimentares de habitantes de comunidades quilombolas rurais do nordeste do estado de Goiás, com atenção especial ao caso da Comunidade Remanescente de Quilombo Baco Pari, visto que esta se encontra em grande vulnerabilidade socioambiental e econômica. Atualmente as comunidades tem acesso a alimentos, basicamente, pela compra – e dependência – em mercados externos. A questão de como a escassez de água na tem afetado a agricultura, as dinâmicas e as formas de produção e consumo foram os relatos mais recorrentes. A técnica para investigação escolhida para a realização do trabalho foi uma pesquisa qualitativa a partir de entrevistas semi-estruturadas aplicadas com atores-chaves.
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O Cerrado é a savana mais rica do mundo, com 5% da biodiversidade global, mas é também um bioma muito ameaçado. Estima-se que 55% de sua área já tenha sido desmatada ou alterada pela ação humana. Os remanescentes de Cerrado estão frequentemente no interior de áreas protegidas (Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Quilombos). Um desses remanescentes encontra-se no sudoeste do estado de Goiás, englobando o Parque Nacional das Emas e territórios quilombolas, como a Comunidade Quilombola do Cedro. A presente pesquisa foi realizada no Cedro e focaliza a iniciativa de uma família, Morais Pio, que constituiu uma reserva para o desenvolvimento de um experimento de conservação e recuperação ambiental, associando conhecimentos tradicionais e técnico-científicos. Coleta de dados sobre os conhecimentos e práticas mobilizados pela Família Morais Pio no manejo da reserva foram utilizados dois instrumentos de pesquisa: observação participante das práticas de plantio e manejo e entrevistas semi-estruturadas com membros da Família Morais Pio. A reserva tem área de 1 hectare e está sendo adensada por meio do plantio de espécies nativas do Cerrado, desde 2014. A decisão de criá-la e manejá-la tem se dado sem a influência direta de ONGs, governo ou empresas. Nesse sentido, é uma manifestação autônoma de defesa da biodiversidade local, já que os arredores estão sendo devastados por monoculturas de soja e milho. As motivações da família para constituir a reserva também estão associadas à manutenção de práticas de medicina popular, que dependem de várias espécies nativas do Cerrado. A Família Morais Pio oferece, com sua iniciativa, um exemplo do que alguns autores chamam de conduta de territorialidade, ou seja, uma disposição para defender um determinado lugar. Populações tradicionais podem contribuir de modo efetivo para a conservação da biodiversidade do Cerrado. As atividades de extrativismo controlado de espécies com propriedades medicinais, combinadas ao adensamento de uma área de Cerrado, por meio de mudas e do plantio direto de sementes de espécies nativas na reserva da Família Morais Pio, revelam que é possível associar metas sociais e ambientais. Afinal, a reserva tem permitido à família manter a biodiversidade em sua área, mas também seus próprios conhecimentos e práticas de manejo das plantas, a produção de remédios caseiros, a saúde e identidade comum. Por fim, a iniciativa nos informa sobre a importância de se associar conhecimentos tradicionais e técnico-científicos em prol da conservação da sociobiodiversidade.
ASSIS, Juliana Ferreira de. O papel de comunidades quilombolas na conservação da biodiversidade do cerrado: a experiência da Comunidade do Cedro, Mineiros-GO. 2016. 38 f., il. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Gestão Ambiental)—Universidade de Brasília, Planaltina-DF, 2016.
Formas de apropriação do ambiente do Cerrado por quilombolas em Goiás: um estudo de caso sobre as comunidades Engenho II e Cedro
Este artículo presenta algunas consideraciones relacionadas con la propiedad y la relación de comunidades de quilombolas de Goiás con el medio ambiente de lo Cerrado. En quilombo Kalunga en el Engenho II, el turismo es una de las formas de apropiación. Como que la propiedad de la Comunidad Cedro del medio ambiente desde la perspectiva de la producción artesanal con las plantas y las raíces típicas del Cerrado. Estas dos perspectivas será analizada, y la categoría de análisis del territorio. Algunas observaciones acerca de cómo se lleva a cabo esta exploración se incrementará, lo que contribuye a la discusión sobre el desarrollo del turismo en la Engenho II y la producción artesanal vinculada al comercio de la comunidad de Cedro. Los debates tendrán lugar en la línea, sin embargo, en las oportunidades de desarrollo económico para el territorio quilombola, teniendo en cuenta la apreciación de la cultura y forma de vida de la población local.
https://www.revistas.ufg.br/atelie/article/view/17763
A região habitada pelo povo Kalunga fica na microrregião Chapada dos Veadeiros, Nordeste de Goiás, a 600 km de Goiânia e 330 km de Brasília. Banhada pelos Rios Paranã e das Almas, repleta de cachoeiras. Nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, na Chapada dos Veadeiros, vinte comunidades remanescentes de quilombos mantiveram-se isoladas por quase 300 anos. A população conserva traços de sua cultura e uma forma muito especial de empregar e entoar as palavras. Kalunga é o nome de uma árvore do Cerrado brasileiro com poderes de cura e também de um córrego no Vão do Paranã. Na língua banto, Kalunga significa lugar sagrado.
“Os mais velhos sabem, porque ouviram …
São histórias daqueles primeiros tempos, contadas pelo pai do seu avô e, antes dele, pelo avô de seu bisavô. Dizem que ali naquelas serras havia uma mina chamada Boa Vista. Ali os escravos trabalhavam de sol a sol, cavoucando as grupiaras para tirar aqueles montões de cascalho que depois eles lavavam, nos regos que traziam a água dos rios e córregos, para separar o ouro. O trabalho era difícil e a vida dura. Porque, como era de costume, por qualquer pequena falta que o escravo cometia, lá estava o senhor para aplicar-lhe os castigos. Eram presos no tronco pelos pés e as mãos. Amarrados no pelourinho, apanhavam com o chicote molhado que lanhava suas costas. E a palmatória cantava, batendo em suas mãos. Os mais velhos ouviram até mesmo contar que, quando um escravo fugia e o senhor pegava de volta, costumava queimar os pés dele com gordura quente, para não poder mais fugir. Mas quem segura um escravo que sonha com a própria liberdade? Por isso os escravos, apesar dos castigos, continuavam tentando fugir.
Fugir, mas ir para onde? Cada vez mais longe, para o lugar mais distante, onde ninguém pudesse alcançar. E isso era o que não faltava naquelas terras de Goiás. Quem passa hoje pela região da Chapada dos Veadeiros compreende por que os escravos que fugiam das minas iam se refugiar ali. A Chapada é um mar de serras e morros cheios de buritis que se estendem até onde a vista alcança. O território Kalunga é cercado delas. Serra do Mendes, do Mocambo, Morro da Mangabeira, Serra do Bom Jardim, da Areia, de São Pedro, Moleque, Boa Vista, Contenda, Bom Despacho, Serra do Maquine, Serra da Ursa. São encostas íngremes, cheias de pedra. Os caminhozinhos estreitos fazem curvas e sobem cada vez mais, quase perdidos no meio do mato. Depois, do outro lado, os paredões de pedra caem quase a pique nas terras baixas dos vales, como muralhas impossíveis de ultrapassar.
As pedras estão nas margens do grande Rio Paranã, que corta todo o território Kalunga e que de lá segue adiante, em direção ao rio Tocantins, que recebe o rio Araguaia e que depois vai desaguar lá bem longe, quase na foz do grande Rio Amazonas… O Paranã tem muitos afluentes: o Rio do Prata, o Rio Bezerra, o Rio das Almas, hoje chamado Rio Branco, o Ribeirão dos Bois. São rios de muita água, que não secam nunca, nem com a pior estiagem. Mas suas margens são cheias de pedras.
E há pedras também nas margens dos córregos que vão dar no Paranã: o Alminha, o Riachão, o Sucuri. E as pedras se acumulam nas beiras dos outros córregos e ribeirões que desaguam nos afluentes do Paranã. No Rio Branco, há o Gameleira, o Capivara, o Vargem Grande, o Bananal, o Palmeira. No Ribeirão dos Bois, há o córrego das Pedras, do Limoeiro, do Boqueirão, do Ouro Fino. Esses são ribeirões e córregos menores, que somem na época da seca. No seu lugar só ficam as cacimbas, no meio do leito de pedras. Também são de pedra as gargantas estreitas e profundas por onde as águas de rios e riachos escavaram seu caminho durante muitos séculos. E é por cima das pedras que se precipitam cachoeiras deslumbrantes, como a do Funil, no Rio Paranã.
Tudo isso mostra por que hoje em dia tanta gente vem de todo o Brasil visitar a região da Chapada dos Veadeiros, onde vive o povo Kalunga, que é um lugar tão lindo. Mas mostra principalmente por que os escravos que fugiam do garimpo do ouro iam se refugiar naquelas serras. Não muito longe da região da mina da Boa Vista existiam grupos de negros quilombolas, em Monte Alegre, Cavalcante, Arraias, Tocantins, Paracatu e vários outros lugares, no caminho das Gerais. Para o governo, eles representavam um perigo e por isso se ordenou que esses ajuntamentos fossem destruídos. Mas nem bem eles se desmanchavam em um lugar, logo se reorganizavam em outro.
Por isso muitos dos escravos que escapavam da repressão fugiam para aquela região da Chapada. Assim, foram formando o povo Kalunga. Ali, no quilombo, eles poderiam construir uma vida nova de liberdade. Quem iria se aventurar a procurar escravo fugido naquele imenso mar de serras e morros de pedra, tão difícil de se alcançar?
Quando os primeiros quilombolas chegaram por la, já encontraram os índios. Por centenas de anos, povos de diversas nações, como os Acroá, Capepuxi, Xacriabá, Xavante, Kaiapó, Karajá, Avá-Canoeiro, tinham vivido por todo o planalto goiano. Mas, com a chegada dos bandeirantes, esses índios se afastaram das terras onde tinham vivido seus avós e os pais e avós de seus avós. Fugiam para não serem escravizados, dizimados pelas doenças ou mesmo massacrados pelo homem branco, como sempre acontecia nas terras onde chegava o povoamento dos portugueses. Assim, recuando para mais longe nas serras e no cerrado, muitos desses povos indígenas tinham se refugiado na Chapada. No mesmo território onde agora os quilombolas fugidos do garimpo também procuravam escapar do homem branco.
Os índios não tinham muita confiança de se aproximar dos quilombolas.
Até hoje as histórias dos mais velhos contam que, no tempo antigo, só conheciam a presença dos índios porque, de noite, ouviam no mato barulho de assovio ou da gaita feita de bambu com furinhos que eles tocavam. Ou então contam que chegavam a ver os índios do outro lado do rio, mas eles logo fugiam, assustados, com medo dos negros. E os negros também fugiam, com medo dos índios… Porque muitos deles, conforme diz o povo Kalunga, eram índios bravos, que não tinham amansado ainda – não conheciam o mundo dos brancos nem queriam entrar em contato com ele. E os quilombolas, para eles, faziam parte desse mundo.
Mas os índios também não eram inimigos dos negros do quilombo. Os mais velhos também contam que era costume tratar os índios por tapuias ou compadres e que todos tomavam cuidado para não assustar ou aborrecer os compadres quando eles andavam por perto das casas.
Tinham que aceitar como brincadeira até as coisas um pouco malvadas que eles às vezes faziam, por malineza, como diz o povo Kalunga. Coisas assim como pegar a comida que ficou de noite na panela fora de casa, fingir que estavam roubando uma galinha ou até mesmo levar embora um menino Kalunga, para só devolver uns dias depois… Eles deviam fazer isso para saber se podiam mesmo confiar nos negros e se aproximar deles.
E, pouco a pouco, crescia a confiança entre negros e índios. Os índios tinham curiosidade de ver, mesmo de longe, como viviam os quilombolas. Dizem até que, no tempo antigo, os índios vinham de noite espiar, quando se faziam as rezas e as festas, com muita música e danças. Eles ficavam vendo sem serem vistos, participando de longe da alegria geral. De manhã cedo, quando iam embora, um ou outro, mais curioso, ficava para trás. Saía do bando, entrava no meio dos negros, aceitava uma pinga. E tentava conversar, apesar de não se entender a língua que ele falava. Isso era no tempo antigo mas, por incrível que pareça, até poucos anos atrás ainda aconteciam histórias assim. Porque até hoje os índios continuam a ser perseguidos e massacrados, agora pelos fazendeiros, e muitas vezes, fugindo, acabavam se encontrando com o povo Kalunga. Por isso até pouco tempo atrás ainda havia desses encontros com índios que não conheciam outra língua além daquela que falavam nas suas aldeias. E essas aldeias ficavam ali bem perto, no meio do território Kalunga. Então, naqueles primeiros tempos, os contatos com os índios deviam ser maiores ainda.
Porque, nessa época, tanto os índios como os negros estavam isolados naquele mundo de serras e rios. Por isso, devagarinho, eles foram se aproximando. E, depois de uns tempos, alguns moços Kalunga já se casavam com moças índias. Alguns dos mais velhos sabem de certeza que, por parte de pai ou de mãe, tiveram uma bisavó que era índia. Quer dizer, quase índia, porque, como diz a gente Kalunga, uma vez que casou com um deles, já tinha amansado, não era mais índio bravo, desses que só vivem no mato… Foi assim que os negros foram se misturando e, conforme foi aumentando a população, devagar eles foram povoando aqueles vãos de serra da região da Chapada, no que é hoje o território Kalunga.
MAS o povo Kalunga não se formou só em contato com os índios, naqueles primeiros tempos. Mais tarde, houve outros negros que foram viver naquela região. E também eles acabaram por se juntar com os descendentes dos quilombolas fugidos dos garimpos de Goiás. Quem eram esses negros? Eram os que, no século XIX, se mudaram para aquelas serras e ali foram abrir fazendas ou viver em pequenos sítios, quando a mineração decaiu.
No vale do Rio Paranã já existiam algumas fazendas de gado desde o século XVIII. Naquela época, com a riqueza trazida pelo ouro, os fazendeiros podiam comprar novas terras e aumentar o seu rebanho e assim essas fazendas foram se espalhando pelo vale. A riqueza que as fazendas produziam também aumentava a prosperidade dos arraiais que se formavam na zona do ouro. Cavalcante foi fundado em 1740 e em 1769 surgiu o arraial de Santo António do Morro do Chapéu, primeiro nome dado à cidade que é hoje Monte Alegre. Mas, conforme o ouro foi se tornando mais escasso, aos poucos essa situação foi mudando. Já no começo do século XIX, mesmo as pessoas que moravam nos arraiais ou viviam das minas tiveram que procurar outro modo de vida. Então, elas começaram a ocupar novas terras no vale do Paranã, organizando outras fazendas de criação ou abrindo pequenas roças que davam para o sustento da família.
Entre essas pessoas havia muitos e muitos negros, porque os negros eram maioria na população de Goiás naqueles tempos. Muitos eram escravos que conseguiam comprar sua liberdade. Pagavam por ela ao senhor em dias de serviço na roça, ou então com o trabalho de faiscador, que era o de catar os pedacinhos de ouro que tinham sobrado na beira dos córregos ou nos regos do garimpo. Outros, já libertos, faziam esse serviço para vender o ouro aos fazendeiros.
Assim conseguiam algum dinheiro, até para comprar uma data de terra. Alguns faziam o comércio daquilo que faltava nas fazendas, indo buscar longe o sal, o querosene ou os panos para costurar roupa. Outros ainda iam trabalhar como agregados nas fazendas.
Recebiam um pedaço de terra para o roçado e a criação de gado e pagavam ao dono com uma parte do que produziam. Esse modo de trabalho era chamado parceria e existia também no garimpo e em outras atividades. Era assim que trabalhavam os tropeiros, que transportavam em lombo de mula, nas bruacas feitas de couro curtido, os produtos que eram trocados no comércio. Era assim que também trabalhavam muitos brancos pobres que acabaram indo morar nos grotões, perto do território Kalunga.
Mas, de quem eram aquelas terras que aqueles negros iam ocupando?
Eram dos próprios negros, que acabavam sendo donos delas de várias maneiras. Naquele tempo antigo, era costume dos donos de fazenda batizar os filhos de seus escravos e de seus agregados. E, quando morriam, às vezes deixavam em testamento para o compadre ou o afilhado as terras onde eles sempre tinham morado. Às vezes, também, os negros escravos ou libertos costumavam ocupar o que se chamava de terras de santo. Eram terras que pertenciam à Igreja e que os padres doavam às famílias que ali trabalhavam como agregados. Assim iam se formando as terras de preto, que pertenciam a famílias de escravos e ex-escravos. Eles tinham a posse dessas terras porque elas tinham sido doadas ou adquiridas por um antepassado comum. Mesmo sem terem um documento oficial reconhecido, um título de propriedade, as pessoas de uma família sabiam que a terra era sua, porque seu pai e seu avô e o pai de seu avô sempre tinham vivido ali.
Naqueles confins da Chapada, alguém iria se preocupar com título de propriedade? Aquela gente estava desbravando sertões distantes das vilas e povoados. E as autoridades com certeza deviam pensar que aquilo era mesmo tarefa para negros e índios. De todo modo, tarefa para gente muito pobre que, apesar de tudo, estava contribuindo para o povoamento do território de Goiás. Então, também aqueles negros que foram morar nos sítios e fazendas no vale do Rio Paraná foram aos poucos se incorporando à formação do povo Kalunga. Ali, cada família tinha seu pedaço de terra, grande ou pequeno, um simples roçado, um sítio ou até mesmo uma fazenda maior. E todos os membros de uma mesma família podiam usar essa terra em comum. Era assim que eles plantavam e dividiam a produção de uma roça de mandioca e repartiam o leite tirado das vacas no curral ou a farinha torrada no forno.
Por isso os mais velhos dizem que, no tempo antigo, não existia fazenda, ou, pelo menos, não existia a fazenda que eles conhecem hoje em dia. Como não faltava terra a ninguém, cada um tinha praticamente tudo o que era necessário para garantir seu sustento e de sua família. Quando precisavam de um corte de pano ou um litro de sal, os mais pobres, donos de sitiozinhos enfiados no meio do mato, iam trabalhar para os mais ricos, donos das fazendas maiores. Era assim que conseguiam algum dinheiro para comprar na cidade o que não existia ali na roça. E, mesmo não tendo terra, um pai de família conseguia viver trabalhando como agregado, em uma fazenda maior.
A terra, para todos eles, negros e brancos, mais ricos ou mais pobres, era ainda apenas um lugar de morar e de viver. Não era ainda uma propriedade que devia engolir as terras dos sítios menores, sendo explorada para produzir riqueza apenas para o seu próprio dono. Isso influiu muito no modo de vida daquela gente que ia se transformando no povo Kalunga. em volta do Rio Paraná, por suas encostas e seus vales, que os moradores chamam de vãos. Como viviam em propriedades mais ou menos isoladas, as famílias se distribuíram com largueza por aquelas terras. Hoje eles ocupam um vasto território que abrange parte de três municípios do Estado de Goiás: Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Nesse território, existem quatro núcleos principais de população: a região da Contenda e do Vão do Calunga, o Vão de Almas, o Vão do Moleque e o antigo Ribeirão dos Negros, depois rebatizado como Ribeirão dos Bois. E é assim que os moradores se identificam, quando se pergunta de onde eles são: do Vão de Almas, da Contenda, do Moleque… Mas nem sempre eles falam só desses núcleos para dizer onde moram. Falam das pequenas localidades que existem nesses lugares maiores, porque é lá que eles de fato vivem. Falam de lugares que se chamam Riachão, Sucuri, Tinguizal, Saco Grande, Volta do Canto, Olho d’Água, Ema, Taboca, Córrego Fundo, Terra Vermelha, Lagoa, Porcos, Brejão, Fazendinha, VargemGrande, Engenho, Funil, Capela e mais dezenas de outros nomes.
É preciso prestar atenção nesses nomes. Você já reparou no que eles querem dizer? Ou pensou no que eles podem nos ensinar sobre o povo Kalunga? Antes de mais nada, esses nomes falam das coisas da natureza e da relação do homem com a natureza. Assim são os nomes de serras, ribeirões e córregos do território Kalunga, e assim também são os nomes dos lugares. Todos eles falam da terra e das águas, dos bichos e das plantas, de tudo aquilo que é essencial para a vida do homem e que torna mais fácil ou difícil sua sobrevivência.
E eles nos ensinam que isso é muito importante para o povo Kalunga.
Querem ver?
O que quer dizer Riachão, Boqueirão, Volta do Canto, Córrego Fundo, Olho d’Água, Lagoa, Funil? São nomes que descrevem o jeito dos rios, córregos e riachos, suas curvas, seus remansos, lugar onde a água brota, onde ela é represada, lugar onde o rio se estreita, apertado. E Terra Vermelha, Brejão, Vargem Redonda, Vargem Grande, Pedra, Ouro Fino? São nomes que falam de terra boa e terra ruim para o plantio, das baixadas da beira dos rios, do terreno pedregoso que está sempre presente, do metal valioso que a terra dá. E o que são esses nomes, Tinguizal, Gameleira, Buriti Comprido, Palmeira, Taboca, Bananal, Limoeiro, Mangabeira? São nomes de plantas da terra, local onde cresce a árvore franzina e forte do cerrado, nomes de árvores frondosas ou elegantes, do bambuzal e das plantas que dão fruto e são alimento. E Sucuri, Ema, Porcos, Rio dos Bois, do Leite, Bezerra? São os bichos da terra, a cobra grande, a ave do cerrado, os bichos da casa que ajudam o trabalho do homem e o alimentam.
Por fim, no que se pensa quando se ouve falar em Mocambo, Fazendinha, Engenho, Capela? Em lugares de moradia, trabalho e oração. Assim, esses nomes ensinam que a vida do povo Kalunga é inseparável de tudo o que é vivo e contribui para manter a vida, na terra e no céu, na água e no ar.
Mas por que eles se chamam Kalunga? Assim, com k, Kalunga.
Foi como passaram a ser chamados todos os moradores daquele território, depois que se descobriu, não muitos anos atrás, que eles tinham uma mesma história comum, como iremos contar mais adiante.
Mas, escrito com c, calunga é uma palavra de muitos sentidos, que se incorporou à língua do povo brasileiro. Quer dizer coisa pequena e insignificante, como o ratinho camundongo que no Nordeste do Brasil se chama calunga ou então catita. E quer dizer também pessoa ilustre, importante. E também é o nome que se dá à boneca que sai nos cortejos dos reis negros dos Maracatus de Pernambuco. E ainda significa a morte, o inferno, o oceano, o senhor, conforme se diz nos livros. Mas, na terra do povo Kalunga, calunga é mesmo o nome de uma plantinha (simaba ferruginea) e do lugar onde ela cresce, perto de um córrego que também tem esse mesmo nome. Tudo isso parece estranho ou muito confuso? Pois não é, não.
A gente costuma pensar que as palavras são só os nomes das coisas, mas esquece que elas circulam entre as pessoas. E, conforme vai passando o tempo, as palavras vão ficando carregadas de muitos significados que estão nas ideias das pessoas. Kalunga é uma palavra comum entre muitos povos africanos e foi com eles que ela veio para o Brasil. Era normal por isso que os próprios africanos fossem chamados assim, calungas. Este era apenas um outro modo de dizer negros. E como os colonizadores portugueses consideravam todos os negros inferiores, é fácil entender por que a palavra calunga, nome que eles davam aos negros, passou a querer dizer também coisa pequena e insignificante, como o camundongo catita do Nordeste.
Mas, quando se pensa no sentido da palavra kalunga para os próprios africanos, tudo se inverte. Entre os povos chamados congo ou angola, por exemplo, que foram dos primeiros a serem trazidos para o Brasil como escravos, kalunga era uma palavra ligada às suas crenças religiosas. Ela se referia ao mundo dos ancestrais. Como já se disse no começo desta história, eles acreditavam que as pessoas deviam prestar culto aos seus antepassados, porque era deles que vinha a sua força. Para eles, o mundo era representado como uma grande roda cortada ao meio e em cada metade havia uma grande montanha.
Numa metade da roda, o pico da montanha ficava virado para cima. Mas na outra metade a montanha estava invertida, de cabeça para baixo. De um lado da roda, a montanha de cima representava o mundo dos vivos. De outro, a montanha de ponta cabeça representava o mundo dos mortos, terra dos ancestrais.
As duas montanhas eram separadas por um grande rio que eles chamavam de kalunga. Por isso, para eles, kalunga era o nome desse lugar de passagem, por onde os homens podiam entrar em contato com a força de seus antepassados. Já se vê assim que, se os africanos associavam a palavra kalunga à morte e ao mundo dos mortos, era de um jeito muito diferente do nosso. Para nós, hoje em dia, o cemitério, morada dos mortos, é um lugar triste e assustador. Para eles, kalunga era o que tornava uma pessoa ilustre e importante, porque mostrava que ela tinha incorporado em sua vida a força de seus antepassados. Era assim que agiam os reis, que só governavam enquanto eram capazes de manter seu povo unido em torno dessa força comum dos antepassados. Por isso, no cortejo dos reis e rainhas dos Maracatus, sempre foi obrigatória a presença da boneca que chamam calunga. Ela é um símbolo da realeza africana e do poder dos ancestrais. anos foram aprisionados e trazidos para o Brasil como escravos, atravessando um grande rio, calunga grande, o mar oceano. Então, para eles, a morte passou a ter outro sentido. A morte era um sentimento.
O sentimento que os escravos traziam na alma, depois de terem perdido sua liberdade. Por isso eles passaram a chamar de malungos todos aqueles que consideravam como seus irmãos, sobretudo os que tinham vindo juntos da África. Eles eram irmãos porque tinham um mesmo destino. Porque era no mesmo barco, o navio negreiro, que eles tinham feito a travessia da calunga grande. Não era de estranhar que eles aceitassem o nome de calungas que os brancos lhes davam.
No entanto, no quilombo da região da Chapada dos Veadeiros, os antigos escravos africanos encontraram de novo o sentido da força que está na palavra kalunga. Ali, o grande rio Paranã, atravessando todo o território que eles ocupavam, era o que protegia o quilombo do resto do mundo do branco. As terras banhadas por suas águas eram o que permitia a cada um continuar vivo. Ali eles estavam defendidos da morte, que seria certa se tivessem que voltar a ser escravos.
0 Paranã podia ser, como na África, o rio que separa a vida e a morte.
Por isso, naquele território, a presença de uma plantinha que chamam de calunga torna sagrada a terra onde ela cresce. Uma humilde plantinha que cresce numa terra que nunca seca e por isso é boa para plantar o alimento que sustenta a vida. Por isso também as terras onde a calunga cresce não podem ser de uma só família. São de todas, porque são elas que acodem a todos nos momentos de precisão.
Uma humilde plantinha que faz lembrar a necessidade da união e da solidariedade de todos. Ela é a marca da realeza africana sustentada pela força dos ancestrais. Por isso ela é símbolo da dignidade do negro e da grandeza do povo Kalunga. No começo, para continuar a ser livres, os primeiros quilombolas tiveram que aprender a sobreviver na região da Chapada. Por isso precisaram aprender a conhecer a natureza ao seu redor. Eles aprenderam a distinguir no meio do mato as árvores que podiam servir para tirar madeira e fazer ferramentas para cortar uma mesa, um banco, para escavar um pilão. Aprenderam a conhecer aquelas que podiam servir para construir uma embarcação ou uma casa. Do jatobá, do ipê, da aroeira, da sucupira branca, aprenderam a tirar os esteios da casa de pau-a-pique, os barrotes, a viga da cumeeira. Dos galhos finos das árvores do cerrado ou da taboca rachada podiam fazer as varas e as taquaras, que são trançadas, amarradas com cipó e depois recobertas de barro amassado, para formar as paredes de taipa. Das folhas das palmeiras aprenderam a tirar a palha para cobrir a casa. Mais tarde, aprenderam também a reconhecer na barranca dos rios o barro bom para fazer o adobe, porque com os tijolos de barro cru secos no sol podiam tornar mais resistente sua casa.
Depois, para garantir seu alimento, passaram a observar e a reconhecer o tempo das chuvas e os sinais da seca e das enchentes. Tudo isso era necessário para saber regular o plantio das roças, nas poucas terras férteis à beira dos rios. Precisaram entender que as cheias do Rio Paraná causam grandes inundações, destruindo as casas e os currais, mas também podem trazer benefícios, porque adubam a terra para o plantio. Foi assim que aprenderam a cuidar da roça de mandioca, com que se faz a farinha depois de escorrer no tapiti a massa da raiz ralada. Aprenderam a cuidar do roçado de feijão, de milho, de abóbora, do cultivo do arroz que cresce na vargem, do pomar de frutas e da horta de verduras plantada no terreiro da casa.
E, aprendendo a distinguir as terras boas para o plantio do algodão, puderam fiar o fio com suas fibras, para tecer no tear o pano de suas roupas ou as cobertas de suas camas. Nas matas, onde a caça era abundante, encontraram carne para o seu sustento, quando faltava a carne do gado que eles mantinham nos pastos e das galinhas criadas na beira da casa. No grande Rio Paraná, nos córregos e ribeirões que são seus afluentes, aprenderam a reconhecer e pegar com vara e tarrafa uma infinidade de peixes. É tá que vivem o piau, o jaú, o pacu, a traíra, o tucunaré, a tilápia, a vista-saia, o curimbatá, a bicuda, a corvina, a piaba, a piabanha, a caboteira, o mandi, o mandibé, o mandi-boi, a papudinha, o taquete. E, ao atravessar os rios, levando gado, aprenderam também a se defender da piranha e do jacaré, que tem ali um criadouro natural.
Sobre os seres vivos dos rios, o povo Kalunga até hoje conta muitas histórias. Umas são de bichos reais, outras de criaturas que são lenda. Como a piratinga-monstra que devora os dedos dos jacarés que nem se mexem de tanto medo, de tão brava que ela é. Ou a pirarara que vive na cachoeira do Funil, deitada em cima de uma corrente de ouro. Ela é um peixe-fera muito grande mesmo, que tem a cabeça apoiada num lado da cachoeira e o rabo no outro e o corpo dela é todo aquele mundo de água que desce de lá. E, sobre os bichos que são de verdade, até mesmo as crianças sabem de cor os nomes dos peixes que vivem nas águas desses rios, onde elas tomam banho e gente grande lava a roupa e a louça da casa, que fica depois secando no sol.
É claro que muitas dessas coisas aqueles negros quilombolas ou os escravos libertos que chegaram ao território Kalunga já sabiam. Porque era isso o que tinham feito a vida toda, na roça, na mina ou na cidade.
Mas a diferença é que agora, em vez de trabalhar para o senhor, como faziam antes os escravos, podiam fazer tudo isso para si mesmos, para manter sua própria vida. Aprendiam a sobreviver na região da Chapada em contato muito próximo com a natureza, com seus rios e suas matas, seus bichos e suas plantas, para assim conservar sua liberdade e sua independência.
Com o correr do tempo, o povo Kalunga também vivendo naquele lugar, a conhecer a utilidade de muitas plantas. Como a pindoba, com seus cocos que dão água, a tiborna, que serve para se fazer cola, o tingui, para fazer sabão. E aprendeu a conhecer as plantas que servem como remédio. A vassourinha, o mentrasto e a folha de manga, para dor de barriga. A negra-mina, a folha de laranja e o capim-de-cheiro, para a febre da gripe. A sucupira e a folha de limão, para dor de garganta ou, como dizem as crianças Kalunga, para quando se tem um espinho na goela. A cagaiteira, que corta a gripe. A bananeira, que tem resina para dor de dente e folhas que são boas para os rins e para curar dor de barriga. Ou a resina do jatobá que, batida com ovo, serve para tratar hérnia, ou rendidura, como diz o povo Kalunga.
O número de plantas medicinais que eles sabem utilizar é extraordinário. Mesmo as crianças conhecem de cor essas plantas e como devem ser usadas. Assim, podemos aprender com elas que a própria plantinha calunga é um lombrigueiro e a folha chamada mercúrio serve para quando se deu uma topada. A espuma da folha de pacari faz fechar as feridas, a folha do algodão e a aroeirinha são anti-inflamatórios e a folha da goiabeira corta disenteria. Mutamba tira dor de cólica e a planta denominada cascavel cura frieira. As folhas da planta que chamam de chapada, machucadas com sal, servem para engordar o gado. E uma planta como a quina tem muitos usos: machucada com pinga ou tomada como chá, é indicada para gripe e inflamação e, é claro, é um poderoso remédio para tratar a sezão, nome antigo da maleita, que os mais velhos ainda usam. Eles dizem que aprenderam a serventia de muitas dessas plantas com os índios, que também ensinaram a usar como remédio bichos como a lagartixa e a formiga carregadeira ou as fezes de muitos animais.
Já se vê que o povo Kalunga, que dependia do conhecimento da natureza para a sua sobrevivência, aprendeu também a preservá-la. Esses descendentes de africanos, que respeitavam os seus antepassados, sabiam que a natureza devia ser respeitada, para que seus recursos pudessem ser utilizados pelos seus filhos e netos e os netos dos seus netos. Esse conhecimento até hoje faz parte do modo de vida do povo Kalunga.
Com o tempo, conforme o povoamento do território começou a o povo Kalunga foi se organizando para superar os problemas e sobreviver àquelas condições. Mais gente ia chegando e a população ia crescendo, porque os novos moradores se casavam com pessoas das famílias dos antigos quilombolas. E eles, por sua vez, já se haviam misturado com a gente das nações indígenas que viviam ali. Então, aos poucos, o povo Kalunga começou a se transformar em uma comunidade, conforme ia se espalhando pelos vãos da bacia do Rio Paranã. As pessoas mais antigas costumavam lembrar que primeiro foi ocupada a Contenda, depois o Sucuri, depois o Vão do Moleque e o Vão de Almas e por fim o Ribeirão dos Bois. Naqueles vales e pés de serra tão difíceis de se alcançar, as pessoas viviam longe umas das outras. Mas, por mais que parecessem isoladas, ali todo mundo acabava sendo parente.
Por isso se respeitava a autoridade dos mais velhos, sobretudo das mulheres. Nisso as pessoas seguiam uma tradição antiga, que até hoje se encontra também na África. A experiência dessas pessoas mais velhas era valorizada porque ela podia servir para orientar os mais novos. Assim, elas eram tratadas com a maior consideração. E por isso também elas acabavam tendo poder para decidir sobre os problemas mais importantes da comunidade. Afinal, ali todo mundo era de alguma forma seu parente. Deste modo, cada núcleo de famílias podia manter sua própria vida, de maneira independente, mas sem perder os laços com os parentes mais distantes. Assim foi sendo criada a organização da comunidade. E esse foi outro fator que também contribuiu para o povo Kalunga estabelecer uma relação equilibrada com a natureza ao seu redor.
Como as famílias viviam bastante afastadas umas das outras, elas nunca ocuparam grandes extensões contínuas do território Kalunga. Assim elas evitavam um uso predatório dos seus recursos naturais. As pessoas plantavam roças para o sustento de toda a família e os parentes usavam a terra em comum. Também criavam bois, vacas e bezerros nas pastagens próximas. Numa parte do ano, levavam o gado para pastagens mais distantes, que também eram utilizadas em comum por muitas famílias. Depois, essas terras de pastagem podiam descansar, quando o gado voltava para as pastagens perto das casas. Em épocas de maior escassez, os homens iam trabalhar por algum tempo nas fazendas da vizinhança. E, em caso de muita necessidade, podiam às vezes também voltar à mineração, retomando o conhecimento herdado de seus antepassados. Mas garimpavam o ouro nos córregos e riachos ali por perto, de forma isolada, sem causar dano aos cursos d’água da região.
Mesmo a caça, em território Kalunga, nunca foi predatória. Apesar de viver perto de um lugar chamado Chapada dos Veadeiros, pela quantidade de caçadores que iam atrás dos grandes veados que viviam por ali, o povo Kalunga nunca pôs em perigo nenhuma espécie animal. Ao contrário, seu território é uma verdadeira reserva da natureza. Ali existem plantas que não são encontradas juntas em nenhum outro lugar. E ali se conservam diversas espécies de animais ameaçados de extinção. O próprio veado é um deles, além do lobo guará, da arara-azul e uma infinidade de periquitos e outras aves. Estes são animais que já não se encontram nem mesmo em outras áreas da Chapada. No tempo antigo, eram os Kalungas que dependiam da natureza para sobreviver. Hoje, é a natureza que também passou a depender deles para sua preservação. E isto foi por causa da maneira como eles souberam organizar a vida da comunidade.
Uma história do povo kalunga / Secretaria de Educação
Fundamental – MEC ; SEF , 2001
NOTA EM DEFESA DO QUILOMBO DE MESQUITA- Cidade Ocidental (GO)
Os Laboratórios e Grupos de Pesquisa da Universidade de Brasília, que abaixo assinam, vêm a público manifestar o repúdio à proposição de drástica redução do Quilombo de Mesquita (GO), estabelecida pelo Conselho Diretor do Incra na Resolução nº 12, de 24 de maio de 2018. Pretende-se retirar mais de 80% do território do Quilombo, o que fere os direitos constitucionais das comunidades envolvidas e o imperativo de consulta prévia, livre, informada, estabelecida na Convenção 169 da OIT/1989.
O Território do Quilombo de Mesquita foi reconhecido a partir de estudos técnicos regularmente realizados no processo administrativo Nº 54700.001261/2006-82, conforme Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID, Diário Oficial da União – DOU, em 29 de agosto de 2011, página 106, com a área delimitada correspondente a 4.292,8259 ha (quatro mil duzentos e noventa e dois hectares, oitenta e dois ares e cinquenta e nove centiares). A Comunidade Quilombo Mesquita, desde 2006, é oficialmente reconhecida pela Certidão expedida pela Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura.
A Resolução nº 12, de 17 de maio de 2018, publicada no DOU nº 99, de 24 de maio de 2018, contém a deliberação do Conselho Diretor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que “acolheu” pedido de uma Associação para redução do Território do Quilombo de Mesquita, e condicionou a publicação da correspondente Portaria de reconhecimento e declaração do território do Quilombo à comprovação de que a maioria dos membros apenas da associação tenha aprovado o pedido de redução do território.
No caso ora em questão referente à Comunidade Quilombola de Mesquita, há um severo impacto no que se refere ao direito ao território tradicional da comunidade. Ante as exigências da Convenção 169/1989, acerca do direito de conhecer e participar das decisões que impactem suas vidas, deve-se questionar se realmente a dimensão da participação da Comunidade Quilombola de Mesquita como um todo foi garantida e se foi realizada ou se se realizará de modo adequado.
Tal Resolução abre precedente perigoso, pois fragiliza a aplicação e cumprimento do disposto no Decreto nº 4.887/2003, para a delimitação e demarcação dos territórios quilombolas, pois desconsidera os estudos técnicos, afasta a segurança jurídica e deslegitima a pretensão da comunidade para a titulação do território no marco da reparação histórica as expropriações e violações sofridas pelo povo negro.
Nesse sentido, seria possível determinar a segurança desse processo de “comprovação” de uma “eventual” consulta para validar a pretendida redução?
É largamente sabida a pressão da especulação imobiliária sobre a área do quilombo de Mesquita, situado na Cidade Ocidental, em Goiás. A quase totalidade da área beneficiada com a decisão da Resolução nº 12 do INCRA é da Divitex Pericumã Empreendimentos Imobiliários. Dentre os sócios da Divitex Pericumã está José Sarney e o senador Eliseu Rezende, do Partido Democratas de Minas Gerais, e do empresário Giovani Morais, conforme destaca matéria jornalística sobre o caso[1] e outras matérias sobre a empresa[2].
O quilombo de Mesquita está situado em uma das maiores regiões metropolitanas do Brasil, compondo a mais populosa “Rede Integrada de Desenvolvimento” ligada ao Ministério da Integração Nacional, com 20 municípios goianos, 03 mineiros e o Distrito Federal[3].
Não é desconhecido o forte lobby para a expropriação de grande parte do legítimo território do Quilombo de Mesquita, por políticos locais, da esfera federal, e por interesses empresariais abusivos, o que gera perseguição moral e ameaças de morte às lideranças do Quilombo. Muitas das ameaças de morte recebidas pelas lideranças da comunidade já foram denunciadas a instâncias do Poder Público, como as Comissões de Direitos Humanos do Congresso Nacional[4].
No contexto de risco de vida e de violação continuada dos direitos humanos da comunidade quilombola e de seus representantes, qualquer situação envolvendo suposto pedido para redução do território deve ser investigada e levada em conta, principalmente pela Fundação Cultural Palmares, cuja missão é assegurar a plena realização dos direitos culturais e territoriais das comunidades de Quilombo. De acordo com o Decreto 4887/2003, a Fundação Cultural Palmares deverá garantir a assistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada.
O direito ao território das comunidades quilombolas é um direito fundamental. Uma vez cumpridas as exigências legais e socioantropológicas, tendo sido delimitada a área com a fixação dos marcos georreferenciais no relatório, não é juridicamente válida qualquer medida tendente a reduzir ou eliminar esse direito. Trata-se de direito irrenunciável. O Conselho Diretor do INCRA sequer poderia ter recebido o pedido para redução da área, quanto mais, julgar pelo acolhimento deste pedido, por não estar revestido de validade jurídica. Ao tomar qualquer medida oficial sobre o território, a comunidade tem direito à Consulta Prévia, livre e informada, com ampla participação e legitimidade. A Resolução nº 12 do INCRA não apresentou de forma cabível a aplicação do direito à Consulta para Comunidade de forma ampla.
Dado o exposto, os Laboratórios e Grupos de Pesquisa, aqui representados por seus pesquisadores e suas pesquisadoras, pedem a revisão do Ato, para que haja sua imediata revogação, com vistas à efetiva garantia dos Direitos Constitucionalmente estabelecidos para os territórios tradicionais das Comunidades Quilombolas.
Assinam a presente Nota os seguintes Laboratórios e Grupos de Pesquisa:
Laboratório de Estudos e Pesquisa em Movimentos Indigenas, Políticas Indigenistas e Indigenismo (LAEPI/ELA/UnB
Observatório dos Direitos Indigenas – OBIND/ELA/UnB
Referências:
[1] Matéria jornalística disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/governo-reduz-territorio-quilombola-em-823-e-beneficia-empresa-de-sarney.html
[2] Disponível em: https://t.co/bqv7D8s9kL
[3] https://quilombomesquitadotcom2.wordpress.com/localizacao-e-territorialidade/
[4] Uma das denúncias feitas pelas lideranças sobre as frequentes ameaças de morte foi recebida pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/195944-REPRESENTANTE-DE-COMUNIDADE-QUILOMBOLA-DENUNCIA-AMEACA-DE-MORTE.html
O quilombo Mesquita, localizado em uma porção territorial que envolve uma parte do município de Cidade Ocidental em Goiás (GO) e também do Distrito Federal (DF), recebeu do Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID – das suas terras em 2011 com aproximadamente 4.160 hectares ocupados por 785 famílias e 1299 indivíduos, sendo que desta área total somente 761 ha estão sob posse dos quilombolas (BRAGA e MARTINS, 2011). O município de Cidade Ocidental está, em vários aspectos socioeconômicos envolvido na dinâmica de Brasília e regionalmente está inserido na Região Integrada de Desenvolvimento (RIDE) do Distrito Federal e Entorno. Com essa dinâmica regional onde se insere Cidade Ocidental, dois núcleos urbanos foram desenvolvidos: a área urbana ‘central’, situada nas proximidades da BR-040; e o outro núcleo urbano no extremo norte do município na divisa entre o município e o DF, ligado pela GO-521, chamado de Jardim ABC. Entre estes dois núcleos urbanos está inserido o território do quilombo Mesquita. Um item tradicional da produção agrícola do Mesquita é o Marmelo, pois desde o século XVIII esta comunidade utiliza tradicionalmente este fruto para a produção do doce de Marmelo que é comercializado na região. Nos últimos anos houve a promoção de cursos e assistência técnica agrícola que proporcionou o desenvolvimento de produções de frutas, hortaliças e também algumas pequenas produções de grãos que se dão nos lotes ocupados pelas famílias quilombolas. Mesmo se tratando de um quilombo, no território proposto para o Mesquita existem empreendimentos agropecuarista não-quilombolas e loteamentos urbanos. Não se limitando a isso, o território Mesquita nos últimos anos tem recebido investidas do capital imobiliário que tem instalado condomínios horizontais e outros empreendimentos nas margens do Território. De posse dessa realidade, é possível observar que o território tem sofrido com os processos de conflito ambiental territorial e espacial devido ao processo de especulação imobiliária ao longo dos últimos anos, pautados basicamente pela comercialização de terras no quilombo que tem induzido a chegada de projetos de infraestrutura, deslocamento de cemitérios onde os ancestrais dos quilombolas foram sepultados, além da degradação dos marcos implantados pela Fundação Cultural Palmares – FCP – de identificação do território enquanto quilombola.
Fonte: AGUIAR, Vinicius Gomes de. Conflito territorial e ambiental no quilombo mesquita/cidade ocidental: racismo ambiental na fronteira DF e Goiás. 2015. 154 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015.
A Comunidade Tradicional do Moinho, está localizada no município de Alto Paraíso/GO, e foi certificada pela Fundação Cultural Palmares em 30/12/2015. Seus moradores nativos e chegantes desenvolvem ações que visam à manutenção do modo de vida tradicional, cujo objetivo é garantir e manter a qualidade de vida dos moradores, que se estabelece através do conhecimento ancestral sobre plantas e ervas do Cerrado. O objetivo desta dissertação é analisar como a Comunidade Tradicional do Moinho pôde perpetuar seu Conhecimento Tradicional, sua Identidade e Cultura ancestralmente construída em um contexto social de pouca valorização da sabedoria repassada de geração a geração sobre plantas, ervas e seus usos que integram medicina natural quilombola. A hipótese é que a perpetuação do conhecimento tradicional dos moradores da Comunidade Tradicional do Moinho está diretamente ligada à preservação do bioma Cerrado em virtude da importância das plantas e ervas nativas da região, sem as quais a medicina tradicional, a culinária, hábitos e costumes podem se perder no tempo. Para o desenvolvimento desta dissertação foram realizadas pesquisas bibliográficas, de campo, entrevistas com os moradores e vivências com Dona Flor, parteira, raizeira e principal expoente da medicina tradicional quilombola. Foi utilizado um referencial teórico e conceitual sobre Geografia Cultural, Território, Identidade e Etnogeografia. A realidade da Comunidade Tradicional do Moinho é retratada através dos mapas e registros fotográficos dos elementos que integram o cotidiano dos moradores, trabalho e renda. Concluiu-se que a Comunidade Tradicional do Moinho agora certificada é conhecida pela medicina quilombola praticada pelos moradores mais antigos, o conhecimento tradicional é repassado de geração em geração pela oralidade e convívio. Toda a riqueza cultural expressa na religiosidade, na culinária e na manipulação e formulação de remédios “do mato” está ameaçada pela modernidade caracterizada pela agricultura tecnificada e expansão imobiliária que diminuem o território utilizado para a coleta de ervas. O Moinho é um quilombo próximo à cidade, sofreu mais influência externa que os demais quilombos pertencentes ao Território Tradicional da Chapada dos Veadeiros, que em sua maioria são comunidades de difícil acesso, que os moradores demonstram a importância do Conhecimento Tradicional, dos saberes e fazeres do Cerrado presentes no modo de vida peculiar. As memórias, “causos”, histórias, lembranças de momentos de alegria, tristeza e superação expressam a Identidade e Cultura do povo quilombola e sua relação sinérgica com o lugar, a Etnogeografia quilombola.
FEITOSA, Eliana Aparecida Silva Santos. Identidade e cultura: estudo etnogeográfico da comunidade tradicional do MOINHO em Alto Paraíso de Goiás. 2017. xviii, 160 f., il. Dissertação (Mestrado em Geografia)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu denuncia crime ambiental no quilombo Monte Alegre
28-Sep-2018
Cerca de 250 palmeiras de coco babaçu foram cortadas no quilombo Monte Alegre, no município de São Luiz Gonzaga, distante 254 km da capital maranhense. A ação infringe a Lei Estadual nº 4.374, de 18.06.1986 que proíbe a derrubada de palmeiras de babaçu, planta nativa, e a Lei Municipal nº 319, de 14.09.2001 de São Luiz Gonzaga, que proíbe derrubada de palmeiras de babaçu e garante livre acesso e uso comum às quebradeiras de coco babaçu.
O Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu vai protocolar denúncia, na próxima segunda-feira (01/10) junto a
o Ministério Público Federal que adiantou que acionará o Instituto Chico Mendes para as providências cabíveis. Em nível estadual, o MIQCB encaminhou ofício à Secretaria Estadual de Direitos Humanos, relatando o ocorrido que se prontificou a acionar a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e o Batalhão Ambiental.
O quilombo Monte Alegre ainda vive o luto da perda recente de dona Maria de Jesus Bringelo, vítima de um ataque fulminante do coração. Dona Dijé era líder quilombola e grande defensora dos povos e comunidades tradicionais. Na mesma semana de sua morte (14/09) tomou posse no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (PCT´s), em Brasília. Em Monte Alegre, em julho de 2018, cerca de 30 representantes desse Conselho juntaram-se a mais de 150 pessoas no Seminário Nacional de PCT´s e entre os temas debatidos, a necessidade de preservação dos territórios e seus biomas, no caso do quilombo, as florestas de babaçuais.
Da década de 70 para cá, Monte Alegre conquistou a certificação como território quilombola e construiu uma vida de preservação à identidade cultural, coletividade e respeito com o meio ambiente. Conquista esta, porém, que sofre novas ameaças nos últimos anos com as propostas de grandes empreendimentos e do próprio governo em desrespeitar a luta coletiva. Desconfiança, ameaças e medo voltaram a se instalar no quilombo que está dividido em permanecer com essa identidade ou se dividir em loteamentos. Hoje, lideranças na comunidade como era Dona Dijé, estão ameaçadas de morte e integram as estatísticas da Comissão Pastoral da Terra.
O quilombo Monte Alegre vivencia atualmente um de seus maiores pesadelos e, segundo, familiares e pessoas próximas de dona Dijé, situação que decepcionou intensamente a líder quilombola. O destino das famílias de Monte Alegre está nas mãos da Justiça Federal que aguarda a finalização do relatório antropológico para decidir sobre a comunidade quilombola. O caso é acompanhado pela 6ª Câmara do Ministério Público Federal, que esteve presente no Seminário de Povos e Comunidades Tradicionais. Em recente audiência de conciliação realizada em Bacabal, a decisão incentivou ainda mais a tensão na comunidade. A decisão incentivou a utilização de cercas, mesmo que somente para os gados, sendo a comunidade a fiscalizar essa instalação. “Além de incentivar o individualismo, as cercas agravam o conflito”, ressaltou um morador da área. Para os quilombolas de Monte Alegre que comungam de total respeito com o meio ambiente, esse crime foi praticado pelas pessoas que querem o território para cercar e plantar de maneira individual.
Monte Alegre está entre os casos de violência registrado no Caderno de Conflitos da CPT. As tentativas de assassinatos no Maranhão subiram 63% e ameaças de morte 13%. São várias pessoas ameaçadas de morte no quilombo. O Maranhão concentra mais da metade das ameaças de morte do país (116 do total de 226) e tentativas de assassinato também (65 de 120). Desse total, seis são quebradeiras de coco babaçu como Dona Dijé. Desde 2009, o Maranhão concentra o maior número de conflitos no campo do Brasil.
A luta dos quilombolas pela demarcação de suas terras
Empreendimentos de exploração econômica VS quilombos do Jequitinhonha-MG.
Introdução
A escravidão é um fato social verificável na história de muitos países através dos séculos, sendo que no Brasil a mão de obra escrava foi massivamente constituída por negros traficados do continente Africano. A luta de resistência dos escravos é marcada pela constituição dos quilombos, comunidades organizadas pelos refugiados, onde viviam em liberdade através de uma comunidade nos moldes do que existia em sua terra natal.
Algumas comunidades do Estado de Minas Gerais, mais especificamente no Vale do Jequitinhonha, são compostas por diversos quilombos. Todavia, em sua grande maioria, esses quilombos ainda não são demarcados e registrados como tais no órgão competente, encontrando diversas dificuldades nos aspectos legais dos procedimentos de reconhecimento, demarcação e titulação de suas terras. O procedimento não é de mera constatação superficial de dados prontos, exigindo trabalho técnico-científico, laudos e interpretação jurídica, bem como tratando dos conflitos entre as comunidades e os empreendimentos econômicos.
Diante da enorme importância que as comunidades tradicionais legam ao Brasil como um todo, o tema é essencial – até por causa de sua delicadeza e complexidade – sendo o enfoque cultural também de extrema relevância, em detrimento da rigorosa análise técnica, histórica e jurídica.
- Breve relato da escravidão e da ocupação das terras quilombolas em MG
A constituição dos quilombos é, sobretudo, marcada pela resistência e luta dos negros e negras contra a escravidão. Os negros trazidos para o Brasil durante o período colonial resistiram e lutaram contra o regime escravista e formaram territórios independentes onde a liberdade e o trabalho em grupo passou a constituir as suas bandeiras de liberdade e autonomia, marcadas principalmente pela resistência.
1.1 Contexto histórico
Na primeira metade do século XVI a escravidão teve início no Brasil como principal sistema econômico de produção. Os portugueses traziam os africanos de suas colônias na África para utilizá-los como mão-de-obra escrava, de início no Nordeste e posteriormente em outras regiões do país.
O comércio de escravo foi crescente durante muitos anos. Os africanos eram sequestrados de seus países e, após o tráfico negreiro, vendidos como mercadorias no Brasil. O transporte do continente africano para ca era feito em condições desumanas, muitos sequer chegavam vivos no Brasil, sendo que inúmeros corpos eram lançados ao mar. Mas, mesmo com grandes perdas a quantidade de escravizados só aumentava com o tempo e o tráfico se mostrou ser uma enorme fonte de lucro.
Os primeiros escravos foram levados para o nordeste e eram tratados da pior forma possível nas fazendas e nos engenhos. Trabalhavam muito e recebiam apenas trapos de roupa e uma péssima alimentação. Eram acorrentados à noite nas senzalas para evitar fugas, e constantemente eram castigados fisicamente.
No final do século XVII a descoberta do ouro e posteriormente do diamante provocou um fluxo migratório intenso para Minas Gerais. A promessa de enriquecimento rápido atraiu pessoas de vários lugares do Brasil e trouxe consigo um grande contingente de escravos que passaram a ser explorados na mineração.
A escravidão foi a forma dominante de organização do trabalho no surgimento da sociedade mineira (Ramos, 1996). A necessidade de mão-de-obra para a exploração mineral e a intensa corrida pelo ouro durante a primeira metade do século XVIII fizeram com que o valor de um negro escravo na região fosse muito maior que no restante do país. Tal fato fez com que os proprietários de escravos de São Paulo, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro se voltassem para a grande riqueza que a mineração estava promovendo, transformando Minas Gerais no centro do poder econômico do país durante o século XVIII.
Entre 1700 e 1850, época do apogeu da mineração, vieram para Minas Gerais 160 grupos de negros africanos de três regiões: os sudaneses (especialmente do Golfo da Guiné: haussas, minas, iorubas, malês, entre outros), os bantus (angolas, congos, bengueleas) e os moçambiques. Desde o século XVIII, a população negra no estado nunca foi inferior a 30% da população total – índice considerado alto (Silva, 2005).
Durante todos estes anos o negro reagiu à escravidão, buscando uma vida digna. Várias foram as revoltas nas fazendas em que escravos fugiam e passavam a se organizar nas florestas, formando os quilombos, que eram comunidades organizadas por escravos refugiados, onde viviam em liberdade através de uma comunidade nos moldes do que existia na África. O quilombo mais famoso foi o Quilombo dos Palmares, que foi liderado por Zumbi e Dandara que até hoje são referências da luta abolicionista no Brasil.
1.2. Formação dos quilombos em Minas Gerais
A história da formação dos quilombos em Minas Gerais é fruto da intensificada migração de escravos para as matas e sertões mineiros no final do século XVIII. Eles foram atraídos pela descoberta do ouro e posteriormente do diamante. Os negros fugitivos dos duros castigos durante todo o período da escravatura buscavam áreas desocupadas e distantes dos grandes senhores das fazendas. Minas era bastante propício para se encontrar locais de difícil acesso, como grotas, serras e matas fechadas. Isso favoreceu a população negra, e também, tornou-se uma estratégia de luta, buscar estes lugares para dificultar a perseguição e, ao mesmo tempo, livrarem de serem capturados pelo poderio dos senhores.
A formação de quilombos em Minas Gerais foi intensa, pesquisas apontam que existiam cerca de 120 quilombos nessa região no período entre 1710 a 1798. Os quilombos em Minas, em geral, não existiam isolados, os escravos não fugiam muito longe das comunidades mineradoras urbanizadas. Próximos às vilas e cidades formaram-se numerosos quilombos, a grande maioria sem nome ou identificação. Porém, a proximidade facilitava a fuga de outros escravos para o local.
Houve grandes repressões às fugas e à formação dos quilombos. Uma das primeiras manifestações disso foi a criação do cargo de “capitão do mato”, que caçavam os escravos que fugiam e os traziam de volta aos senhores de engenho. Porém, mesmo assim, as fugas e a criação de quilombos se intensificavam cada vez mais com o tempo.
Os quilombolas, conhecidos também como calhambolas, foram acolhidos por comerciantes e alguns fazendeiros que negociavam com eles em razão da mão de obra barata e para evitar rebeliões e ataques às suas propriedades. Os quilombolas precisavam vender seus produtos para garantir sua sobrevivência, por isso a proximidade de quilombos aos centros urbanos era interessante tanto para quilombolas quanto para muitos setores da sociedade.
As vendas eram o espaço mais utilizado pelos negros para negociar seus produtos, trocar informações e estabelecer solidariedade entre si. As vendas eram lideradas, em sua maioria, por mulheres negras (forras ou escravas), que possuíam um papel estratégico, pois mantinham estreito trato com o público e controlavam o comércio de vendas no espaço físico e ambulante. Essas mulheres eram chamadas de negras do tabuleiro ou quitandeiras, sempre bem informadas, elas avisavam os quilombolas sobre as investidas de repressão e facilitavam as trocas comerciais entre os negros fugidos e os demais grupos da sociedade. Além disso, elas forneciam gêneros alimentícios a escravos e os auxiliavam em suas fugas, escondendo-os em suas residências (Silva, 2005: 196).
Os negros levados para Minas Gerais lutaram contra o cativeiro e pela liberdade, por diferentes formas de resistência conquistaram seu espaço em terras mineiras. No século do Ouro (XVIII) alguns escravos chegaram inclusive a comprar sua liberdade com dinheiro que juntavam a vida toda. Conseguiam se tornar livres após adquirirem a carta de alforria. A fuga, a ocupação de áreas não povoadas após abolição e o recebimento de terras de seus antigos proprietários por doação ou herança foram formas de conquista de consolidação de territórios negros em Minas Gerais.
Contudo, no Brasil contemporâneo, essas terras, juntamente com sua história, estão ameaçadas. A falta de oportunidade e o preconceito acabam fechando as portas para essas pessoas. Ainda hoje, a “sociedade” tenta acabar com os territórios que remanescem com famílias descendentes de escravos.
- Reconhecimento das comunidades quilombolas
Mesmo durante todo o período da escravidão, o combate aos quilombos sempre ocorreu. A legislação colonial, por exemplo, se preocupou em trazer um conceito de quilombo, a fim de reprimir todo e qualquer agrupamento de população negra. Tal diploma definiu o quilombo como uma reunião de ao menos cinco escravos fugidos, tendo eles formado ranchos permanentes ou não. Os quilombos eram considerados um dos três maiores inimigos da ordem pública, durante o século XIX, ao lado dos índios selvagens e dos grandes potentados rurais.
Grande parte das comunidades quilombolas foram formadas a partir de movimentos de resistência. Essa era razão da preocupação do governo em reprimir os quilombos. Entretanto, havia uma certa tolerância por parte do regime dominante já que os quilombolas tinham grande importância econômica em razão do comercio, uma vez que os quilombos se tornaram locais onde funcionavam postos comerciais, e da oferta de mão-de-obra escrava ou barata.
Nos últimos anos, a definição do que vem a ser uma comunidade quilombola tem sido objeto de debate em todos os âmbitos da vida política. Trata-se de uma questão crucial para essas comunidades, pois envolve a sua forma de organização interna, o acesso ao território – que até hoje é um direito não regularizado – e o alcance de benefícios sociais especificamente direcionados aos quilombolas.
O que caracteriza o quilombo hoje são suas características antropológicas e territoriais. Para o reconhecimento de uma comunidade como sendo quilombola é necessário, antes de mais nada, do reconhecimento de tal título pelos próprios membros da comunidade, através da autodefinição; em seguida, é feito um levantamento histórico e cultural para saber qual é a relação da população com o território que ocupa.
É através do Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003, que é feito o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Com o advento do Decreto 4883/03 foi transferida do Ministério da Cultura para o INCRA a competência para a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades quilombolas, assim como a determinação para suas demarcações e titulações[1]. Foi a partir desse decreto que se tornou possível o avanço no reconhecimento dos direitos das comunidades enquanto povos tribais, segundo o qual uma comunidade tradicional se afirma enquanto tal pela autodefinição.
Para o fim de esclarecer o que é “remanescente”, o art. 2º do Decreto 4887/03 assim dispõe:
Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
É a própria comunidade que se reconhece “remanescente do quilombo”. O amparo legal é dado pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cujas determinações foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e Decreto nº 5.051/2004.
O reconhecimento da condição de quilombola foi estabelecido, também, pelo Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. No Artigo 3º, o decreto define que essas populações “são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição.
2.1. Processo de regulamentação e demarcação das terras quilombolas
Embora o INCRA, por força do Decreto 4.887/03, seja o órgão competente para realizar o procedimento de demarcação e titulação, os Estados, Distrito Federal e Municípios também possuem competência comum e concorrente com o poder federal para realizar tais procedimentos. Com o objetivo de melhor cuidar dos processos de titulação, o INCRA criou, na sua Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária, a Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ) e nas Superintendências Regionais, os Serviços de Regularização de Territórios Quilombolas, cabendo às comunidades, por força da Instrução Normativa 57 de 20 de outubro de 2009, a solicitação de abertura de procedimentos administrativos que visem regular seus territórios.
Para a obtenção do título da terra e outros benefícios, como participação nas políticas públicas para esse segmento populacional, a comunidade deve ser cadastrada na Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura.
O INCRA, primeiramente, irá realizar um estudo da área, destinado para elaboração de Relatório Técnico e Delimitação (RTID) da área destinada. A segunda fase desse estudo consiste na recepção, onde será analisada e julgada eventuais contestações. Aprovado em definitivo esse relatório, o Incra publicará uma portaria de reconhecimento declarando os limites do território quilombola. Há ainda uma terceira fase seguinte ao procedimento administrativo correspondente à regulamentação fundiária, com a retirada de ocupantes não quilombolas mediante desapropriação ou o pagamento de indenização. Para que isso ocorra, há um controle nesse processo que culmina com a concessão do título a comunidade, que tem caráter coletivo, pró – indiviso e em nome da associação dos moradores da área, devidamente registrado em cartório de imóveis e não constituindo nenhum ônus financeiro à comunidade beneficiada.
2.2. Entraves no Processo de Reconhecimento
É por meio de ato do Poder Público que se reconhece uma comunidade como remanescente de quilombo e lhe confere o título de propriedade sobre as terras ocupadas. Esse ato ostenta natureza declaratória e não constitutiva. Portanto, é possível afirmar que a propriedade dos remanescentes de quilombos existe, antes mesmo, do atos oficiais, que, por sua vez, são praticados apenas para assegurar a necessária segurança jurídica aos quilombolas.
Em relação à titulação dos territórios quilombolas, em recente relatório, a Comissão Pró Índio de São Paulo (CPISP), evidencia que até agosto de 2006 havia “310 processos de regularização de terras e quilombos perante o INCRA. Instaurada a CPI-SP, revela que desses 310 processos abertos somente 128 receberam o protocolo no INCRA, correspondendo a 59% do total. Os 182 processos restantes não foram verificados nenhuma medida administrativa no sentido de regularizar as terras quilombolas.[2]
Ao analisar a situação em outros Estados, observa-se que nas duas superintendências com maior número de processos abertos, Minas Gerais e Maranhão, a situação é a mesma: No Maranhão, dos 89 processos abertos, 59 ganharam apenas um número de protocolo, nos demais não foram tomadas nenhuma providência. Em Minas Gerais, dos 40 processos, apenas 2 estão em andamento, sendo que em relação aos 38 restantes não foram adotadas qualquer medida administrativa.[3]
Dessa forma, verifica-se através do quadro descrito pela CPISP que não há interesse e nem prioridade relativamente aos direitos quilombolas, sobretudo no tocante ao reconhecimento e titulação de suas terras. É válido lembrar que é assegurado na Constituição, em seu art. 216, bem como no art. 68 do ADCT[4] às comunidades quilombolas o direito à propriedade das terras.
Na prática o que se verifica é que a concretização do art. 68 tem sido difícil e parte dessas dificuldades decorre do entrave no processo de titulação instituído em 2008, na Gestão do Presidente Lula. Com o advento da Instrução Normativa 57/2009, que regulamenta o procedimento de demarcação e titulação, o processo tornou-se mais lento, burocratizado e ineficiente, acarretando uma insegurança e angustiante espera da comunidade em relação ao seu futuro, e à possível ingerência de terceiros em suas terras, bem como a ocorrência de grilagem das terras, como veremos a seguir.
De acordo com o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva – Cedefes, existem aproximadamente 400 comunidades quilombolas no Estado de Minas Gerais distribuídas por mais de 155 municípios. As regiões do estado com maior concentração de comunidades quilombolas são a região norte e a nordeste, com destaque nesta última para o Vale do Jequitinhonha. A maior parte das comunidades quilombolas do estado apresenta-se em contexto rural. No entanto, Minas Gerais se destaca pela presença significativa de quilombos em áreas urbanas.
No ano de 2004 foi criada a N´Golo, a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais. A morosidade do governo em proceder à titulação de suas terras foi a principal razão que motivou as comunidades quilombolas a se unir em busca da garantia de seus direitos.
Embora a organização dos quilombolas tenha tornado visível a história de resistência dos negros, além de ter resultado na criação de programas governamentais especiais para as comunidades, a luta pelo reconhecimento e a titulação de seus territórios é um desafio permanente. Até junho de 2007, uma única comunidade em Minas Gerais havia conseguido a titulação de suas terras: Porto Corís.
Atendendo às reivindicações dos quilombolas, a Superintendência do Incra em Minas Gerais abriu diversos processos para a titulação de terras de quilombo. Em maio de 2007, estavam em tramitação 67 processos. No entanto, 61 deles apenas haviam recebido um número de protocolo, ou seja, nenhuma medida efetiva havia sido tomada pelo governo no sentido de encaminhar a regularização daqueles territórios.
Atualmente, há mais de 2 mil comunidades quilombolas no país, lutando pelo direito de propriedade de suas terras.
2.3. Fraudes no processo de Reconhecimento das Terras Quilombolas
Um dos principais meios comumente utilizados de fraude no procedimento de demarcação de terras é a grilagem. O termo grilagem vem da descrição de uma prática antiga de envelhecer documentos forjados com a finalidade de conseguir a posse de uma determinada área.
O processo de grilagem, antigamente, ocorria da seguinte maneira: os papéis falsificados eram colocados em uma caixa com grilos; com o passar do tempo, a ação dos insetos dava aos documentos uma aparência envelhecida. Dessa forma, assim como na prática com os grilos, a ocupação ilegal de terras públicas continua fundamentada no esforço para fazer documentos falsos parecerem verdadeiros.
Atualmente, as pessoas que cometem esse tipo de fraude, assim chamadas de “grileiros”, utilizam-se de outros artifícios mais sofisticados que substituem a ação dos grilos. Através do registro no cartório de títulos de imóveis, o grileiro repete o mesmo procedimento nos órgãos fundiários do governo (Incra, na esfera federal, e órgãos de controle estaduais) e perante à Receita Federal.[5]
Através do cruzamento de registros, o grileiro tenta dar uma aparência legal à fraude. A grilagem acontece até hoje devido às deficiências encontradas no sistema de controle de terras no Brasil. Foram implementadas propostas para coibir tal ação, mas o governo ainda não implementou um registro único de terras ou ao menos um cadastro específico para as grandes propriedades, tornando-as vulneráveis a esse procedimento.[6]
No que tange o reconhecimento das comunidades quilombolas, evidencia-se um enorme problema a demora no reconhecimento da posse da terra, em que a ação de grilagem torna-se oportuno frente à morosidade no processo de titulação, ameaçando a herança ancestral mantida as duras lutas pelos quilombolas. A medida que esse reconhecimento não ocorre, a comunidade é prejudicada e torna-se vulnerável tanto a ações de fraudes, como a atuação da própria grilagem, como expulsão, violência no campo, violência contra essas famílias por parte de fazendeiros e proprietários locais com interesses nas terras, a atuação de atravessadores, impactando até na atividade produtiva da comunidade, que está fadada a perder além de suas terras, o seu meio de subsistência. É o que se verifica na Comunidade Quilombola de União dos Palmares, em Alagoas.[7]
- Conflitos entre empresas e as comunidades do vale do Jequitinhonha
A história da região conhecida como vale do Jequitinhonha remonta às primeiras entradas, época do Brasil Colônia, em que se destacava a exploração mineral como a mais importante atividade econômica. Com o descobrimento do ouro na região de Ouro Preto, no final do século XVII, por meio do movimento das bandeiras, ocorreu a ocupação do interior de Minas Gerais, que visava à extração mineral. A região do Vale, mais especificamente a do Alto Jequitinhonha, passou a ser uma das áreas de atração de população. Havia nessa época o desenvolvimento da agricultura e pecuária, só que voltada à subsistência, sendo a mineração a atividade econômica mais relevante. Com a crise da mineração e o declínio da produção aurífera no final do século XVIII a agricultura familiar ganhou força e hoje essa região é marcada pela agricultura de subsistência.
O Vale do Jequitinhonha é, atualmente, uma das regiões mais pobres do Estado de Minas Gerais. Baseada historicamente na mineração, a economia da região apresentou momentos de crise e prosperidade. Passou por três grandes fontes de modernização do capital: a expansão pecuária, a introdução da cafeicultura e a implantação das reflorestadoras[8]. Sobre essa última, implantada nos anos 1970 e fundada numa ideia desenvolvimentista, já que o vale era tido, e ainda é tido, como um “bolsão de pobreza” [9], o Governo Federal criou uma política de reflorestamento a partir do eucalipto. Essa política, por meio da instituição de incentivos fiscais, tinha como objetivo principal abastecer de carvão vegetal as indústrias siderúrgicas e fornecer matéria prima para a indústria de celulose. Assente nesse programa, empresas reflorestadoras apropriaram-se de terras dos pequenos produtores e substituíram grande parte do cerrado pela monocultura do eucalipto.
Os reflexos da política desenvolvimentista de reflorestamento criada na década de 70 são latentes até hoje, principalmente nas comunidades quilombolas da região. Por não possuírem o título de suas terras, os remanescentes acabam sendo expulsos delas por empresas de papel e celulose. Tais empresas adquirem estas terras de fazendeiros que conseguem a propriedade das mesmas, na maioria das vezes, por meio de procedimentos de grilagem. Utilizam tal procedimento para tomar as terras de uso comum das comunidades.
Atualmente, temos um caso tramitando no Judiciário, na Comarca de Araçuaí – Minas Gerais, em que um fazendeiro pede a reintegração da posse de “sua” propriedade, supostamente tomada pela comunidade quilombola Capim Puba, situada no vale do Jequitinhonha (processo nº 0041285-43.2014.8.13.0034). Tal propriedade pertence à comunidade quilombola, pelo menos de fato, há décadas. Casos como esse são recorrentes nessa região. A Susano – Papel e Celulose e outras empresas, vem disputando esses territórios há décadas com as comunidades pertencentes ao município Virgem da Lapa, no vale do Jequitinhonha.
A demora no processo de titulação traz às comunidades remanescentes de quilombos uma enorme insegurança jurídica. As pessoas que lá vivem, em sua grande maioria, nasceram e viveram a vida inteira naquele local e sobrevivem do que vem da terra. Com a presença autoritária de tais empreendimentos, o bioma cerrado tem dado lugar à monocultura do eucalipto, e, consequentemente, o meio de sobrevivência das comunidades está sendo prejudicado.
Embora grande parte da população em geral, e principalmente, quilombola, viva na zona rural, pesquisas recentes demonstram que a formação de quilombos urbanos tem se intensificou. A regularização dos territórios quilombolas se mostra urgente em razão dos conflitos fundiários e das ameaças de perda do território que compõem a realidade dessas comunidades. Os casos mais conflituosos para os quilombos rurais, além das reflorestadoras, se relacionam à construção de usinas hidrelétricas, instalações de mineradoras, criação de parques ou reservas biológicas. Já os quilombos urbanos são ameaçados pela especulação imobiliária.
Em Minas Gerais, e especificamente, no Vale do Jequitinhonha nos últimos anos outros fatores vêm se agregando aos supracitados. A falta de perspectivas de trabalho, de políticas públicas focalizadas e a escassez de água (devido aos prolongados período de estiagem) que vem assolando o vale, são uns dos maiores fatores para que esses quilombos se desloquem para o meio urbano contribuindo assim, com a superlotação das cidades, violência, formação de favelas, e tantos outros problemas sociais que são crescentes em nossa sociedade.
Em Minas Gerais, a luta pela terra quilombola apresenta-se relacionada à luta pelo acesso à água e pela preservação do meio ambiente. Ao enfrentar a seca, os grandes projetos de desenvolvimento (hidrelétricas e mineração principalmente), as monoculturas de eucalipto e a especulação imobiliária, no caso dos quilombos urbanos, essas comunidades tentam fazer valer o seu direito de permanecer em terras conquistadas por seus antepassados.
- Importância cultural das comunidades quilombolas
Fruto de um intenso e heróico movimento resistente ao modelo escravagista e opressor instaurado no Brasil colônia e, do reconhecimento dessa injustiça histórica, o Território Remanescente de Comunidade Quilombola é uma concretização das conquistas da comunidade afro descendente no Brasil.
A Assembléia Constituinte de 1988, pressionada por reivindicações de organizações de movimentos negros e setores progressistas, aprovou dispositivos constitucionais concebidos como formas de compensação e/ou reparação à opressão histórica sofrida pela comunidade negra.
O reconhecimento realizado pelo Estado como “remanescentes de quilombos” trouxe autoestima para a população negra que passou a ser identificada como quilombola. A posse definitiva de suas terras representa um avanço histórico e político, ratificando a conquista do direito de exercer a cidadania.
Toda essa questão de reconhecimento trouxe as essas comunidades uma identidade, de modo que essas transformações na autopercepção refletem diretamente na forma como passam a ser percebidas pela sociedade em geral. A visão dos remanescentes mudou. Hoje eles têm a consciência de que não representam mais aqueles que estavam presos a relações arcaicas de produção e reprodução social.
As comunidades quilombolas têm um forte vínculo com a terra. É a terra que os permite afirmar sua identidade. A terra é um meio de sobrevivência que os permite dar continuidade às suas tradições.
A importância da demarcação do território remanescente da comunidade Quilombola implica, pois, na preservação da identidade histórica do nosso país, bem como a mudança de conceito racial enraizado em nossa cultura.
Conclusão
Comunidades quilombolas são grupos étnico-raciais, com ancestralidade negra representantes de questões relacionadas à resistência e opressões sofridas no passado brasileiro.
É garantido constitucionalmente o direito das comunidades remanescentes de quilombos de obter a titularidade de seus respectivos territórios pelo Estado.
As normas que dizem a respeito da regulamentação de comunidades quilombolas, possuem a função social de preservar o patrimônio cultural brasileiro. Porém, ainda assim, as comunidades quilombolas vêm enfrentando problemas de reconhecimento da posse de suas terras, o que por sua vez, ocasiona diversos conflitos para tais comunidades e também para sociedade, uma vez que muitas vezes, essas comunidades terminam por migrar para o meio urbano, onde são profundamente hostilizadas, e não possuem o respaldo da sociedade para que tenham uma vida digna.
As comunidades quilombolas são vítimas de interesses de pessoas com um poder econômico superior aos seus, que ameaçam a herança ancestral mantida pelos quilombos.
É dever nosso cobrar atitudes que intensifiquem a celeridade na regulamentação de terras quilombolas. A tais pessoas é devido o respeito por toda a sua história, não podendo ficar à margem da sociedade.
[1] http://www.incra.gov.br/estrutura-fundiaria/quilombolas. Acesso em 15.05.2015
[2]Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPISP), ”Ações Judiciais e Terras de Quilombo”, novembro de 2006, disponível em http://www.cpisp.org.br/terras. Último acesso em 16.05.2015
[3]Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPISP), ”Ações Judiciais e Terras de Quilombo”, novembro de 2006, disponível em http://www.cpisp.org.br/terras. Último acesso em 16.05.2015
[4] Título X- Atos de Disposições Constitucionais Transitórias. https://quilombos.files.wordpress.com/2007/12/artigos-68-215e216.pdf. Acesso em 16.05.15.
[5]http://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/areas_prioritarias/amazonia1/ameacas_riscos_amazonia/desma…. Acesso em 16.05.2015.
[6]http://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/areas_prioritarias/amazonia1/ameacas_riscos_amazonia/desma…. Acesso em 16.052015
[7] http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/11/reconhecimento-de-terras-quilombolas-esbarra-na-especu…. Acesso em 16.05.2015.
[8] ZHOURI, Andréa e OLIVEIRA, Raquel. Desenvolvimento, conflitos sociais e violência no Brasil rural: o caso das usinas hidrelétricas. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/asoc/v10n2/a08v10n2>. Acesso em 14/05/2015
[9]CALIXTO, Juliana Sena e RIBEIRO, Áureo Eduardo Magalhães. Três olhares sobre o reflorestamento: a percepção de atores sociais sobre a monocultura de eucalipto no alto Jequitinhonha – MG. Disponível em:. Acesso em 16/05/2015.
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