Simão Francisco Dias, raizeiro da comunidade do Prata.
Seu Simão é um mestre benzedor, raizeiro e parteiro que reside na comunidade do Prata, em Vão do Moleque, no munícipio de Cavalcante. Lavrador, casado pela segunda vez com Maria, tem onze filhos – seis de seu primeiro casamento e cinco do segundo. De estatura pequena e aparentemente frágil, olhar penetrante e fala reflexiva, o Sr. Simão dedica-se hoje, quase integralmente, ao ofício de raizeiro, aprendido com seu padrinho, o Sr. Adão. A lida na roça e as tarefas diárias são constantemente interrompidas pelas solicitações de atendimentos às doenças diversas da comunidade. Por ocasiões, chegam a “pousar”, em sua pequena residência, de dez a vinte pessoas, em busca de tratamento.
A casa de Simão se encontra a mais de 700 quilômetros de Goiânia, na zona rural do município de Cavalcante, quase divisa com o estado do Tocantins. Para chegar lá, percorre-se uma distância de 520 quilômetros em estradas asfaltadas e mais 150 quilômetros em estradas de chão. O local só pode ser visitado em época de seca, pois não existem pontes para a travessia dos rios Corrente e Correntinha. A região é de topografia difícil, mas de rara beleza. É preciso agendar a viagem com antecedência, pois não há na região telefonia ou transporte oficial, o que é uma realidade no quilombo Kalunga.
Se eu chegar da cidade ou da roça com o sangue quente e mexer nas plantas elas ressentem, porque tudo tem uma ciência. Antes de pegar nas plantas de remédio precisa pedir licença. Fazer remédio tem seus mistérios, é preciso conhecer a natureza das coisas e das pessoas. Cada planta, rio ou pedra têm uma função. Tudo tem uma função e não se pode querer mudar a natureza das coisas. Uma erva que serve para uma pessoa para outro pode não fazer bem. É preciso ter ciência. Primeiramente Deus, depois o conhecimento do homem.
Para preparar remédios é preciso conhecer as plantas. Mas não apenas saber para que elas servem. Também é necessário entender que as plantas são seres vivos e, portanto, existe a maneira certa para lidar com elas, objetivando “extrair o dom da cura”. Há plantas que são boas para beber, outras para banhos, outras para usar como emplastro sobre machucados. Dependendo da queixa, do tipo de aflição, existe uma maneira correta de usar. E também é necessário conhecer a natureza das pessoas: há pessoas que não podem ingerir plantas quentes; outras já não toleram as frias, porque já são calmas demais, ou têm a pressão baixa; outras não podem com álcool ou açúcar. Assim, cada remédio deve ser preparado para aquela pessoa específica.
Durante os festejos, é preciso fazer resguardo: não é indicado iniciar um tratamento nessa época, a menos que seja de extrema urgência. A razão disso está no fato de as plantas estarem relacionadas com os Santos. Não se deve começar um tratamento durante o dia do Santo que não é daquela planta. Cada planta é mais de acordo com um Santo pela data em que floresce ou os frutos que dá. As plantas que dão frutos no mês de julho, como por exemplo no mês de Santo Antônio, elas são quentes, por causa dos Santos que morreram nas fogueiras. Além disso, no mês delas, não se pode colher as folhas ou tirar raiz, porque aquela é a época em que a planta está com toda sua força para dar frutos. Tirar essa força pode acarretar o enfraquecimento da planta e consequentemente do remédio.
Todos os dias eu me levanto antes do sol sair, faço minhas orações e vou tirar remédios ou fazer algum serviço que meu padrinho Adão recomenda. Porque ser raizeiros ocupa todo o tempo. E não é somente os atendimentos realizados na casa da gente, isto é só a primeira parte, mas depois vem as fases de acompanhar o doente. Mesmo depois que as pessoas vão embora a gente continua trabalhando para resolver aquele problema. Tem coisas mais simples que uma erva resolve, mas tem coisas mais complicadas que demanda outros recursos. Orações, visitas, conversas, idas na floresta nas horas certas para tirar remédio, maneira certa de preparar. Tudo feito para vencer aquele mal. Porque muitas vezes aquela enfermidade não é só física.
Recebi este dom de mexer com remédios e para mim é uma alegria que tenho. Uma missão. Quando vejo uma pessoa que estava doente melhorar. É um dom de Deus. Muitas vezes quando a pessoa doente chega aqui, eu fico incomodado pensando como ajudar. E confio nas orações. Rezo e peço a Deus para me orientar como ajudar naquele sofrimento. E quando eu rezo muitas vezes antes da pessoa se queixar eu já sinto em mim o local da dor. E aquilo que precisa fazer para a pessoa melhorar.
O que aprendi e continuo aprendendo com meu padrinho Adão é conhecimento para toda a vida. Ele é nossa força aqui. Porque não estamos sozinhos. O padrinho Adão sempre reúne todos nós, raizeiros da região, na sua casa para fazer uma “brincadeira”.Lá rezamos, fazemos remédios e conversamos sobre aqueles casos de tratamentos mais difíceis, trocamos plantas e assim um ajuda o outro. E ele dá firmeza nos nossos trabalhos. (Sr. Simão em agosto de 2018).
Fonte: SILVA, Maria Tereza Gomes da. O ofício do raizeiro: saberes e práticas integrativas em comunidades tradicionais quilombolas Kalunga. 2019. 191 f. Dissertação (Mestrado em Performances Culturais) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.