“Mulher de sorriso largo e contagiante, Luzia Gonçalves dos Santos, nasceu em dezembro de 1978, na Fazenda Santaninha, município de Cavalcante – Goiás. Luzia cresceu acompanhando a mãe, o pai e o avô em suas andanças pelo Cerrado para coletar ervas medicinais. Dessas experiências nasce o desejo de aprender. Logo aos 10 anos de idade ela coletou e preparou seu primeiro remédio caseiro.

                ‘Com 10 anos eu comecei a ‘rancar’ meus remédios’ com a minha mãe. Ela saia no campo né, ela falava aqui é um pé de perdiz. Mamãe é bom pra quê? ‘Bom pro útero’. Ia lá e arrancava, aí quando a minha mãe precisava de remédio eu mesma ia lá e arrancava pra ela, cortava tudim, colocava no sol pra secar, enchia os vidros…’.

                Nessa época, sua mãe Dona Nazira Paulino da Costa sofreu um aborto espontâneo e necessitou de cuidados. A pequena Luzia, com o auxílio de seu pai José Gonçalves dos Santos, preparou um caldo que, segundo ela, ajudou a fortalecer sua mãe que não conseguia nem levantar da cama, da seguinte forma: ‘Pega cinco cebolinha branca, pica bem fininho, coloca num prato. Pego um pedaço de sebo de carneiro mais ou menos do tamanho de um limão e corta bem fininho e coloca em cima das cebolinhas no prato. Coloca água pra ferver e joga em cima do sebo com a cebolinha e acrescenta uma pitadinha de sal e vai tomando morno’. Depois ainda preparou o sumo que estancaria a hemorragia, feito com algodão e outras ervas. Dona Luzia ainda revela que esta receita da cebolinha com sebo de carneiro também é eficaz em casos da pessoa ter sido acometida por raio, reumatismo nos ossos e cólica menstrual. Ensina que essa medida deve ser tomada de uma só vez, podendo ser repetida até três vezes ao dia.

                Os anos se passaram, e aos 19 anos Luzia casou-se com Miron, natural da região da Parida, Alto Paraíso de Goiás. Com ele constituiu família e viveu durante anos, até se tornar viúva em 2003. Passou por vários desafios sozinha, mas, guerreira, superou e hoje vive com seus sete filhos na cidade de Alto Paraíso de Goiás.

                Luzia afirma que a maioria dos jovens não tem interesse em aprender sobre as plantas medicinais e nem exercer o ofício de raizeiro e, que isso se deve, muitas vezes, aos pais ou a vaidade.

                ‘Eles não tem interesse né, eles pensam que medicina hoje pra eles tem que ser remédio de farmácia, ‘ah não quero isso porque amarga, não quero isso porque não quero’, assim vai do pai também, meus irmãos não aprendeu não foi porque meu pai mais minha mãe não ensinou, ensinou, interesse mesmo que não teve de aprender. Tudo é na vaidade, eles (os jovens) não quer andar no Cerrado, ‘ah não, eu não vou arranhar minhas pernas’…. Fala com uma mocinha hoje, vai ali, vamos no cerrado, ‘ah eu vou acabar com minhas pernas’, mas elas não sabem o que é importante, aprender é muito importante, na hora que precisar elas não vão saber’.

                Sua filha Lailane Gonçalves, hoje com 18 anos, é uma exceção pois já possui muitos conhecimentos sobre a medicina popular e busca no Cerrado a cura para suas enfermidades.

                Lailane não troca os chás e garrafadas preparadas e colhidas por ela mesma por remédios alopáticos. A jovem afirma que prefere os seus próprios chás e garrafadas, pois os da mãe ‘são amargos’. Foram seus conhecimentos e entusiasmo no campo que despertaram a curiosidade de profissionais da UnB em 2014, quando então Lailane tinham apenas 16 anos, fato que desencadeou um projeto sobre plantas medicinais para jovens bolsistas do Centro de Estudos UnB Cerrado. Dentro desse projeto, Lailane e também sua amiga Sulene se destacaram pelos conhecimentos que demonstraram em campo, o que despertou a professora Mieko a começar a pensar num projeto para concorrer ao Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás.

                Luzia é profunda conhecedora dos segredos que a natureza guarda, além do trabalho doméstico ela se divide entre ser diarista e o ofício de raizeira, atendendo a todos da comunidade que procuram a cura através das plantas, sempre com um adorável sorriso nos lábios.

                Apesar dos desafios encontrados pelo caminho desde a falta de reconhecimento, inclusive financeiro, pelo trabalho como raizeira, a dificuldade de acesso a determinadas ervas, o preconceito e o estereótipo de ‘macumbeira’, D. Luzia segue fazendo suas garrafadas, que na maioria das vezes é composta por mais de quinze ervas diferentes, como a rosetinha, velame branco, jurubeba de cupim, pé perdiz, aroeira, angico, jequitibá, mama-cadela, entre outras. Para ela é uma felicidade só, quando através de suas mãos ela tráz a cura para alguma enfermidade.

                Apesar de muito nova – menos de 40 anos de idade, é muito sábia e observa as fases lunares para confeccionar seus compostos medicinais: “‘por exemplo, garrafada pra mioma e cisto, é na lua minguante, que é pra diminuir…’.

                ‘Eu tenho vontade de ter uma lojinha de produtos da medicina do Cerrado, mas tenho medo de não ter autorização, de ter multa, porque em Cavalcante mesmo, até as pinga com raiz foram tudo proibida no bar. A perseguição aqui é muita. é difícil ter licença pra trabalhar tranquilo’… ‘A gente as veis gasta, paga passagem, toma tempo da gente pra ir no campo coletar as planta, faz a garrafada e depois a pessoa nem paga nada pra gente. É bom ajudá, mas é ruim ficar no prejuízo. Tenho o maior prazer de fazê um remédio pra pessoa, mas também tem que ver que a gente precisa de receber alguma coisinha pra viver’.

                Essa guardiã dos segredos do Cerrado tem prazer em transmitir seus saberes para aqueles que a procura. Em meio a tantas adversidades, segue seu caminho orientando seus filhos sobre a importância da cura através das plantas e também do respeito que se deve ter com o meio ambiente, que fornece matéria prima para seus tratamentos. Segue sem desistir, segue firme, ajudando a quem necessita, partilhando tudo o que tem, e compartilhando seus preciosos conhecimentos tradicionais com a comunidade de Alto Paraíso de Goiás”.

 

Fonte: Ribeiro, Daniela. et al. Raizeiros de Alto Paraíso : Saberes Ameaçados. Alto Paraíso de Goiás: Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás, SEDUCE, 2017. v. 1, p. 72-76