Luzia Francisco da Conceição, comunidade de Vão de Almas, de Cavalcante
Dona Luzia tem 66 anos, é casada, mãe de seis filhos e avó de quatro netos. Reside nas proximidades do rio Corriola. O Vão de Almas é uma comunidade que está situada a aproximadamente três horas do Município de Cavalcante. De difícil acesso, além de protegido pelas serras, ainda há de se atravessar o Rio Almas em seu lugar mais raso, dada a inexistência de pontes. Nas visitas ao local, percorreu-se vasta extensão de cerrado bem preservado, de vegetação natural, terreno de areias brancas. Pequenas moradias podem ser avistadas em meio aos grandes círculos brancos de areia.
[…] comecei a mexer com remédios porque vi a precisão. Daí pensei: se os outros acham os remédios eu também vou achar. E aí rezei pedindo a Deus para me mostrar aonde era que estava aquele remédio certo. E encontrei.
[…] Sempre fiz assim. Antes de sair para tirar remédio eu rezo para Deus me mostrar. Aí as pessoas começaram a procurar para fazer os remédios, tirar uma raiz, uma folha. A queixar o que é que elas tinham… eu fazia os remédios e dava certo. Daí segui fazendo, até hoje.
Dependendo do número de pessoas que por ali estiverem “pousando”, o quarto, a sala, assim como a despensa e o mangueiral se transforma em dormitório, ocupado, na maioria das vezes, por redes amarradas para aqueles que por ali pousam com frequência em busca de tratamento. Por aqui, as pessoas vêm em busca de tratamento e às vezes viajam dias até chegar. Quando é muita gente, estendem redes aí pelos cantos. Quando é [gente] de perto mesmo, eu as atendo no quartinho, mas quando tem de buscar uma raiz ou fazer um lambedor, aí eu vou nos matos, no rio, e cozinho o remédio na cozinha. Elas têm de esperar por aí, debaixo das mangueiras, se não tiver chovendo.
Eu gosto de fazer minhas coisas no rio. Lavar as roupas, banhar, buscar água para beber. Até minhas plantas de remédio, algumas eu gosto de plantar na beira do rio. O rio fala com a gente. Conforme o movimento das águas a gente sabe o que vai suceder. Quando o rio sobe até em riba, perto da casa, a gente conhece se o ano vai ter fartura ou não. Pela altura do rio, a marca das águas no barranco.
Quando o sol alcança aquela pedra grande é meio-dia e quando chega naquela outra é hora de recolher a criação. O rio é tudo para a mulher. É aqui que a gente lava a roupa, as panelas, toma banho. Na hora das mulheres banharem, homem nenhum vem aqui. É nessa hora que a gente se reúne para prosear. A gente aqui do Kalunga precisa da água para tudo.
O rio canta e nós cantamos para ele. Quando se vem lavar nossas coisas, quando as mulheres se juntam, desde os antigos que a gente canta lavando as roupas assim:
“Senhora Santana ao redor do mundo. Onde ela passava deixava uma flor.
Os anjos que passam bebem água dela. Oh que água tão doce, oi sim.
Senhora tão bela.
Encontrei Maria na beira do rio, lavando os paninhos dos seus bentos fios. Maria lavava, José estendia.
Menino chorava do frio que sentia. Calai, meu menino, calai, meu amor. Que a faca que corta não dá tai sem dor
Que a faca que corta não dá tai sem dor”.
As águas curam a gente, não só pela vida que traz, mas se alguém estiver com o corpo ruim, febre, com “dor de intrudente”, má vontade que os outros põem na gente. É só banhar com sabão de tingui no rio, mas tem a maneira certa, passa o sabão três vezes e deita na correnteza e mergulha três vezes a cabeça. As águas e o tingui lava a má vontade.
Precisamos de um lugar certo para atender as pessoas, pode ser até no meio da rua, na estrada, na Igreja, mas tem de ser no reservado. Assim onde ela pode contar os problemas e a gente sentir os remédios que vai precisar. Se for aqui em casa ainda melhor. Agora na hora de buscar os remédios e de fazer, ai é nós e Deus.
Fonte: SILVA, Maria Tereza Gomes da. O ofício do raizeiro: saberes e práticas integrativas em comunidades tradicionais quilombolas Kalunga. 2019. 191 f. Dissertação (Mestrado em Performances Culturais) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.