O cerrado é a nossa farmácia

A medicina tradicional, como uma prática intrínseca ao bem-estar  comunitário sustentada no acesso à biodiversidade e em conhecimentos  tradicionais associados, está diretamente relacionada à implementação da  Convenção da Diversidade Biológica (CDB) no Brasil. Essa implementação se refere principalmente aos artigos 8 “j” e 10 “c”, que recomendam aos países  signatários o respeito, a promoção e a manutenção dos conhecimentos, inovações e práticas de povos indígenas e comunidades locais, reconhecendo o seu papel fundamental para a conservação da biodiversidade. 

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Quem cura no Cerrado?

“A autoidentidade de quem pratica a medicina tradicional do Cerrado se  diversifica conforme várias especialidades de cura, sendo seus praticantes  conhecidos por raizeiras, curandeiros, remedeiros, benzedeiras, erveiras, parteiras,  agentes de pastoral, etc. Essas múltiplas identidades, contudo, não podem  ser interpretadas como individuais, pois compartilham experiências comuns de cura por meio do uso da biodiversidade e de conhecimentos tradicionais e,  por isso, constituem uma identidade social”.

”O caminho do ofício se inicia com a transmissão de conhecimentos tradicionais, provenientes principalmente de relações familiares, repassados por avós, mães, tias, entre outros, ou por meio do exercício de escuta junto de pessoas mais experientes. Este aprendizado é complementado e enriquecido com a participação das raizeiras em cursos, encontros, intercâmbios e pesquisas populares. As raizeiras fortalecem esta cadeia de transmissão de conhecimentos ao ensinarem o que aprendem para outras pessoas por meio, principalmente, de conversas informais na convivência em comunidade. É importante destacar que as raizeiras são constantemente convidadas para ministrar cursos e palestras em escolas do Ensino Médio e universidades. Há, também, raizeiras que são professoras de escolas e trabalham o tema com as crianças e adolescentes e na alfabetização de adultos”.

Como dependem das plantas para a fabricação de seus produtos, as raizeiras têm relação direta com a natureza. Estão diariamente em contato com ela e lutam por sua preservação e uso sustentável.

Do quintal, são retiradas as plantas domesticadas necessárias à produção dos remédios caseiros (guaco, hortelã, tanchagem, arnica da horta, poejo, alfavaca, etc) e do cerrado, aquelas que só se desenvolvem ali e não são cultivadas em quintais (barbatimão, pacari, amarelinha, dom bernardo, etc.). 

A preparação espiritual da raizeira, no momento que antecede a coleta, está relacionada a sua concepção de natureza e faz-se necessária para que esse momento não seja carregado de tensões, preocupações ou outros sentimentos considerados negativos e que podem interferir na qualidade da interação da raizeira com as plantas. Não é recomendável coletá-las estando nervoso ou com raiva, pois o estado de humor interfere nas propriedades da planta e, consequentemente, na qualidade do remédio que será preparado a partir dela. A preparação espiritual a qual se referem as raizeiras é necessária nos momentos que antecedem a atividade de coleta ou o preparo de um remédio caseiro, e ela se dá por meio de uma “troca espiritual com a natureza, de energia e purificação. Por isso a raizeira precisa estar sempre em contato com o  cerrado”.

 

O manejo adequado das plantas medicinais, de forma que seja garantida sua sobrevivência, é outro aspecto que costuma merecer a atenção das raizeiras, e muitos são os aspectos que envolvem o cuidado com a planta, a fim de garantir sua manutenção e reprodução: evitar a superexploração de uma determinada espécie; priorizar a retirada da entrecasca dos galhos em detrimento daquela que fica presente no tronco; não retirar a entrecasca de todo o diâmetro do tronco de uma árvore; não realizar a coleta no período da floração; fazer uma coleta seletiva em que seja priorizada a retirada das plantas adultas, dentre outros. O cuidado com a natureza é visto pelas raizeiras como um dos principais traços do seu ofício. No entanto, não se trata de uma relação unilateral, mas de um mútuo cuidado entre raizeiras e cerrado, uma vez que o contato com ele contribui para purificar sua energia”. 

As raizeiras não vivem exclusivamente no meio rural, sendo também moradoras de comunidades periurbanas e urbanas, por isso se estabelece uma rede social baseada nos fluxos de plantas medicinais do rural para o urbano. 

As raizeiras preparam inúmeros tipos de remédios caseiros sob 14 diferentes formas: garrafada; tintura; xarope; vinagre medicinal; pomada; creme; sabonete; pílula; bala medicinal ou pastilha; doce ou geléia medicinal; óleo medicado; pó; chá (planta seca); multimistura. 

Exploração descomedida de recursos naturais e perda de biodiversidade

 

– Crescente apropriação de territórios coletivos pertencentes aos povos e comunidades tradicionais por grandes empresas capitalistas do setor minerário, agropecuário, imobiliário e energético têm provocado a devastação do cerrado, por meio do desmatamento de áreas com vegetação nativa, supressão de nascentes, contaminação dos solos e dos recursos hídricos, apenas para citar alguns de seus efeitos. 

 

– A legislação sanitária busca impor regras e princípios elaborados no interior do sistema biomédico e, portanto, alheios aos contextos culturais no interior do qual se dão as práticas tradicionais de cura e cuidado das raizeiras. 

 

 

– O avanço das religiões protestantes sobre as zonas rurais e a conversão religiosa de algumas raizeiras. Esse fato tem provocado a desestruturação dos sistemas de saberes de cura e cuidado tradicionais, em função da condenação dessas práticas.

– Direito ao território 

– Exercício do ofício: liberdade no uso de seus conhecimentos tradicionais para a prevenção e o tratamento de saúde 

– Conservação do bioma Cerrado

– Proteção de seus saberes tradicionais sobre as propriedades e usos das plantas medicinais.

 Reconhecimento do ofício das raizeiras do Cerrado como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

DIAS, Jaqueline Evangelista; LAUREANO, Lourdes Cardozo. (Orgs.). Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado: direito consuetudinário de praticar a medicina tradicional. Turmalina: Articulação Pacari, 2014. Disponível em: <https://absch.cbd.int/api/v2013/documents/E5195138-7269-5615-AD9E-E25D19844AFB/attachments/202716/Protocolo_Comunitario-Raizeiras.pdf>.  

DIAS, Jaqueline Evangelista; LAUREANO, Lourdes Cardozo. (Coods.). Farmacopeia Popular do Cerrado. Goiás: Articulação Pacari  (Associação Pacari), 2009. Disponível em: <https://ava.icmbio.gov.br/mod/data/view.php?d=17&rid=2765#:~:text=A%20Farmacop%C3%A9ia%20Popular%20do%20Cerrado%20%C3%A9%20o%20produto%20de%20um,exerc%C3%ADcio%20de%20cidadania%20a%20essas>.

D’ALMEIDA, Sabrina Soares. Guardiã das folhas: mobilização identitária de raizeiras do cerrado e a autorregulação do ofício. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. 2018. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-03052019-125459/pt-br.php>. 

Conheça a história e trabalho de algumas raizeiras e raizeiros do Cerrado

Ser raizeira é ter “uma sabedoria que não tem donos, somente herdeiros”  

Raizeiras e raizeiros são povos tradicionais, detentores de conhecimentos transmitidos através de gerações, que cuidam da saúde comunitária por meio de recursos naturais e da espiritualidade. Sabem identificar plantas medicinais e seus ecossistemas de ocorrência, conhecem técnicas sustentáveis para a coleta de plantas, preparo de remédios caseiros e sua indicação para muitos males e doenças (DIAS e LAUREANO, 2010, p.86).

“toda a vivência de uma raizeira deve ter uma preparação espiritual, seja na hora de entrar nas áreas de coleta de plantas medicinais, ou quando for preparar um remédio caseiro, ou na hora de fazer um atendimento de saúde. Esta preparação vem principalmente de uma troca espiritual com a natureza, de energia e purificação, por isso a raizeira precisa estar sempre em contato com o Cerrado” Protocolo comunitário biocultural das raizeiras do Cerrado – direito consuetudinário de praticar a medicina tradicional 2014).