Podemos receber muito de outras cul­turas, mas não devemos nos aculturar’’. Laís Aderne (1937-2007)

            Laís Aderne, mineira, natural de Diamantina, foi pintora, gravadora, professora, arte-educadora e curadora. Em 1956 iniciou estudos na Escola de Belas Artes de Belo Horizonte e concluiu seus estudos na ENBA sob a orientação de Osvaldo Goeldi, no Rio de Janeiro, em 1961. Trabalhou na Escolinha de Arte do Brasil, onde organizava cursos de gravura, pintura e desenho para adolescentes e adultos. Entre os anos de 1964 e 1967 viajou a estudos para a Espanha com bolsa do governo espanhol. De volta ao Brasil, transfere-se para Brasília, onde cursou a pós-graduação na área da educação e em 1989, assumiu a função de secretária da Cultura do Distrito Federal. Foi professora na Universidade de Brasília (Universidade de Brasília); criadora do curso de Educação Artística na Universidade Federal da Paraíba; diretora da Escolinha de Arte do Brasil, diretora Teatral e autora de Arte e Educação da comunidade, idealizou a Casa da Cultura da América Latina e Festival Latino Americano de Arte e Cultura-FLAAC (Brasília); criadora da Feira do Troca de Olhos D’água no município de Alexânia-GO em 1974. Em 2007 recebeu Medalha de Mérito Geográfico da Sociedade Brasileira de Geologia (SBG).

Historicamente, a FEIRA DO TROCA teve seu inicio em dezembro de 1974, com a iniciativa da professora Laís Aderne que, ao fazer um projeto de arte-educação, identificou os mestres artesãos, resgatou os fazeres tradicionais da população nativa e criou um canal de escoamento para a produção artesanal. Valendo-se do costume local que tinha como forma de comercialização a troca (escambo), criou-se um evento onde se trocavam roupas, sapatos, utensílios domésticos usados, trazidos pelos visitantes de cidades vizinhas, por produtos do vilarejo: artesanato e produtos da agricultura local. Uniram-se duas práticas tradicionais da comunidade, o escambo e o artesanato de raiz.

A troca por necessidade não mais existe. Permanece, no entanto, a tradição da troca justa, aquela que interessa e proporciona satisfação e prazer para as partes. Um bom produto e uma boa capacidade de negociador continuam sendo a garantia da boa prática do escambo.

Com o passar do tempo, a FEIRA DO TROCA se consolidou como grande evento turístico que, além da atividade tradicional de escambo e venda de produtos da terra,  apresenta ao público local e visitante uma agenda cultural rica e variada, com atrações que incluem apresentações musicais com artistas locais, duplas sertanejas de raiz, moda de viola, danças tradicionais como o catira, teatro de mamulengo e contação de “causos” e histórias. Além disso, os visitantes poderão se deliciar com os produtos da gastronomia local, como galinhada, galinha com pequi, empadão goiano, frango com gueiroba, pamonha, caldo e engrossado de milho e muito mais.

Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre a Feira do Troca:

[…] Todos juntos promovem uma operação que é das mais antigas do mundo: a “feira de troca”. E com isso fazem vibrar a pequena comunidade. […] a coisa se fez sem o espírito de caridade fútil das madames de coluna social, nem teria cabimento que assim fosse. Angariou-se tudo que pudesse interessar aos moradores; roupas e sapatos, principalmente. E nada ficou sem lavar, coser, passar, engraxar. Anunciada de casa em casa, e depois de grande expectativa, realizou-se a feira. Como o nome indicava, não era preciso dinheiro para obter qualquer coisa. Bastava trazer um objeto feito pelo próprio morador, e a compra se fazia em termos de permuta. Um tear feito a canivete foi barganhado por um terno completo e um par de calçados. Outro artista achou colocação para a sua escultura em madeira representando a cena hoje quase impossível de se ver: dois homens serrando uma tora com grupião, para fazer tábuas. Esgotada a produção artesanal, os locais passaram a oferecer ovos e galinhas: fim de feira e festa. Uma mulher muda exprimiu sua alegria com sinais, pedindo um beijo. Diz Fernando que “ficou assim selado o pacto entre duas culturas: a que chegava, via e sabia, e a que nem via, mas existia por si, e desaparecia fatalmente sem o socorro da outra […]”

O que é feito com boa intenção distingue-se à primeira vista por seu colorido humano, e decerto os pobres habitantes de Olhos d`Água sentirão na iniciativa dos professores o desejo de vê-los ativos, produtivos e confirmados em suas raízes. A história é simpática, mas faço votos por que feira de trocas seja apenas uma abertura, não um meio normal de relações econômicas. Infelizmente o dinheiro ex existe, e é bom que os humildes artesãos e donos de galináceos, no triste interior do Brasil, lhe sintam o cheiro. (JORNAL DO BRASIL, Caderno B, p. 5, 21 dez. 1975)

Assista também o vídeo integrante da exposição Relicário Olhos d’Água, de Zé Nobre. Vladimir Carvalho, TT Catalão, Dona Nega das Bonecas, Armando Faria, Seu Vicente dos Passarinhos, Sueli e Geraldo Gomes, Fatinha e Celino contam a historia da Feira do Troca:

https://www.youtube.com/watch?v=e6kjPxZ450o

 

Em 1995 Laís Aderne deu inicio ao Projeto de Educação para um Desenvolvimento Sustentável Para o Município de Belém, do qual destacam-se: o Liceu Escola de Artes e Ofícios Mestre Raimundo Cardoso, a Sociedade de Artesãos e Amigos de Icoaraci, a Feira de Artesanato do Paracuri, o Museu de Cerâmicas e Tradições Populares da Amazônia, contribuiu ainda com a Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira, e finalmente o Ecomuseu da Amazônia. A proposta de criação do Ecomuseu da Amazônia foi escrita inicialmente pela professora Maria Terezinha Resende Martins, então membro da equipe da professora Laïs Fontoura Aderne, e uma das fundadoras do Ecomuseu da Amazônia, pelo seu histórico de participação em projetos comunitários e ainda pela formação acadêmica na área de ecomuseus. Em junho de 2007, nasce, com apoio da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) e da Prefeitura Municipal de Belém, em três dias de Seminário, o Ecomuseu da Amazônia.

Trata-se de um museu que assumiu o compromisso de cuidar e preservar as expressões culturais e ambientais de um território. Entende-se que o Ecomuseu da Amazônia representava segundo a concepção de Laïs Aderne, uma nova leitura e projeção de um processo de recuperação e preservação iniciado nos anos 1970, no Planalto Central do Brasil, através do Projeto Olhos d’Água, que, por sua vez, contribuiu para a proposta de criação do Subsistema de Educação para o Desenvolvimento Sustentável no município de Belém, e ainda para a criação do Ecomuseu do Cerrado-GO (1998), como um processo de resistência à descaracterização cultural e violenta degradação ambiental que atingiu os municípios do entorno do Distrito Federal, com a construção de Brasília. O Projeto Olhos d’Água foi construído em 1973 sob a coordenação de Laïs Aderne para o povoado de Santo Antônio de Olhos d’Água, localizado no município de Alexânia (GO), entorno do Distrito Federal; projeto piloto que gerou a proposta do Ecomuseu do Cerrado por ter resgatado através de seu processo a autossustentabilidade da região, bem como elementos da Ecologia Humana, Ambiental e Social.

Em 1997, Laís Aderne criou o Ecomuseu do Cerrado através do Instituto Huah do Planalto Central da qual foi sua presidente e da Diretoria de Ecossistemas do Ibama, agregando educadores, ecologistas e organizações governamentais e não governamentais, inspirado em similares existentes na Europa, no Canadá e nos Estados Unidos. Sete municípios do Entorno do DF integraram o Ecomuseu: Abadiânia, Águas Lindas, Alexânia, Corumbá de Goiás, Cocalzinho, Pirenópolis, Santo Antônio do Descoberto numa área de cerca de 8.000 quilômetros quadrados. Mais que um museu ao ar livre, a proposta era desenvolver linhas de ação em espaços rurais e urbanos, de predomínio do bioma Cerrado, contemplando um vasto programa nas áreas de educação, ecologia, cultura e economia auto-sustentável. O Projeto Ecomuseu do Cerrado tinha por objetivo construir uma coalizão social dos sete municípios que constituem o seu território, visando a conservação da natureza, o uso sustentável dos recursos naturais e a distribuição eqüitativa das riquezas geradas pela sociedade. A metodologia de trabalho empregada no projeto foi o planejamento e a gestão biorregional indicada para os projetos biorregionais, ecorregionais, corredores ecológicos e bacias hidrográficas. O Instituto Huáh quis contribuir para o desenvolvimento autossustentável do Planalto Central através de ações sistêmicas, desenvolvidas no projeto do Eco Museu.

 

“Laís era uma colecionadora de pessoas. Eu como filho era uma das peças de sua coleção que tinha gente de todo mundo, da Paraíba, de Brasília, de Marajó e de Olhos D´Água“. Pierre Aderne

https://fb.watch/2v6kyTLN-y/

 

Laís trabalhou no CIEM (Centro Integrado de Ensino Médio), escola-modelo idealizada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, localizada dentro do campus da UnB. Laís esteve na liderança do teatro dentro do projeto inovador no Colégio Pré-Universitário. Coordenou e criou a Sala Glauce Rocha, com capacidade para 142 lugares, e ofereceu o ensino do teatro como disciplina optativa. Dimer Monteiro e Dácio Caldeira eram professores e uma futura geração de artistas passou por suas mãos, dentre eles, Guilherme Reis, hoje secretário de Cultura do GDF. Ensinava que era preciso aprender diversas culturas, mas jamais se aculturar. Laís Aderne estimulou a formação de grupo de teatro, que tinha a participação do jovem Lauro Nascimento, dramaturgo e diretor, que, nos anos 1980, criou um importante movimento cultural em Brasília, denominado Teatro nos Bares. Com Laís no CIEM, fez o “Auto da Camisa Listrada”, uma das poucas dramaturgias inéditas concebidas em Brasília na década de 1960. Não à toa, a escola-modelo foi fechada pela ditadura militar (Sergio Maggio Metrópoles 2017).

O homem que enganou o diabo e ainda pediu troco de Laís Aderne (1975)

A falta de teatros levou a diretora Laís Aderne a batalhar espaços alternativos. Os galpões da 508 Sul, pouco utilizados, foram revertidos no Teatro Galpão que estreou com o texto de Luiz Gutemberg.

“Diria que a primeira geração de artistas brasilienses de várias áreas saiu dessa fornada. Laís era a mãe dessa geração de não nascidos mas amantes da cidade e da cidadania candanga. Ela foi a primeira secretária de cultura quando esse órgão foi instituído
Iara Pietricovsky
 

É inegável a importância de Laís Aderne na área educacional e cultural do Centro-oeste e sua morte em 2007 foi uma grande perda na região:
“Faltava alguém que mostrasse à história que sobre essa vastidão, desde priscas eras, habitava um meio físico, um meio humano e um meio cultural riquíssimo. O espaço sobre o qual ergueu-se o colosso não era um deserto como os metropolitanos cosmopolitas acreditavam. Era um oceano profundo de tradições. Laís Aderne foi essa pessoa . Ela saiu de Brasília, percorreu os caminhos de Goiás, as estradas reais que desde os incas articulavam essa imensa hinterlandia americana e mostrou a todos a riqueza destas tradições. Nos seus últimos anos de vida animava, com todo fervor, a ideaia do Eco-Museu do Cerrado. E, já no início dos anos 70 ajudava a comunidade de Olhos d Água, marcada pela ferida narcísica da perda de sua condição munícipe, a recompor-se em sua dignidade através da Feira do Troca. Laís Aderne fez muito mais do que isso. Fez muito pela educação e pela cultura de Alexânia e Olhos d’ Água. Fez tanto que hoje se justifica dar-lhe o nome a iniciativas que assinalam essa auto-consciência da cidade. É tempo de perpetuarmos o nome de Laís Aderne, por exemplo, no Pólo Universitário, sem desdouro do nome de Cora Coralina, outro ícone do Estado, mas que se dobraria, com a mesma naturalidade com que fazia doces e versos, à imposição do nome de Laís em nosso meio. É tempo do nome de Laís inscrever-se nas Escolas, nas Praças, nas Ruas da cidade para que os jovens saibam fazer da vida dela um exemplo para si mesmo. E para que nossa gratidão com esta mulher se afirme, enfim, em gesto. Para tanto ficam conclamados a Administração Municipal e a Câmara de Vereadores e todos aqueles que, sensibilizados, tomem esse Editorial como um verdadeiro MANIFESTO divulgando-o em seu meio. (CORREIO BRASILIENSE 2007).

 

HOMENAGEM A LAÏS ADERNE NO MEMORIAL DOS CERRATENSES
O principal objetivo do Memorial dos Cerratenses é valorizar e dar visibilidade ao Cerrado por meio da história de personagens que dedicaram suas vidas para valorizar o bioma. Busca reconhecer, compilar e divulgar o patrimônio histórico que se constitui nas memórias biográficas destas personalidades. Oriundos das áreas da pesquisa e tecnologia, história, arte e cultura, movimentos sociais e povos tradicionais, o memorial apresenta pessoas que têm algo em comum: grande paixão e dedicação pelo Cerrado, e atuaram pela sua valorização e proteção, deixando um legado a ser difundido e compartilhado com todos.

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