Colheita Dourada
O Jalapão é tido como uma das regiões mais inflamáveis do país. Tal configuração se dá tanto em razão de seus ecossistemas pirofíticos, cuja inevitabilidade de queima é iminente, como ainda pela importância das queimadas no modo de vida geralista. Reconhecer o papel do fogo nesta verdadeira trama de natureza e cultura é o primeiro passo para adentrarmos no universo do capim-dourado.
A arranca é uma atividade perambulante, andarilha e sem direção certa, sempre em busca das ilhas de capim. Como dizem, ranca mais quem anda mais. Ao longo do itinerário a família se separa, cada membro indo numa direção, contornando as veredas em busca dos locais de maior concentração da planta. Nesta imagem, Deni, Iracema, Belarmina e Dieison se reencontram na vereda da Estiva, após duas horas de coleta.
20 de setembro é a data biopolítica demarcada pelos órgãos ambientais como o início da colheita do capim, entendendo que por volta deste período as hastes estejam secas e douradas para atrair o olhar dos turistas, mas também as sementes amadurecidas o suficiente para permitir a reprodução do vegetal.
O apogeu comercial do artesanato de capim-dourado, a partir da década de 1990, se deve à comunidade quilombola de Mumbuca, localizada nas intermediações do município de Mateiros e sobreposta ao Parque Estadual do Jalapão (PEJ). Esta comunidade é internacionalmente reconhecida como a grande responsável por manter a circulação das técnicas de costura do capim e inseri-lo na economia local.
Enquanto no campo o capim é ajuntado de maneira disforme, a separação dos maços é feita na rancharia. Além de local de descanso das pernas e trabalho com as mãos, é também na rancharia onde se desenrola a partilha de histórias sobre as luvizias (assombrações) e façanhas do povo de primeiro.
Nesta habitação, coberta com palhas de buriti, sempre haverá pratos, talheres e condimentos de cozinha (principalmente sal e óleo) para serem usufruídos pelos que ali passarem para pernoitar.
A trempa também é uma constante nestas instalações, pois apenas esta cuidadosa justaposição de três pedras consegue proteger o fogo doméstico do vento de gerais.
A raspagem é uma condicionante dos órgãos ambientais para a permissão de colheita. Os relatos de geralistas multados por não terem raspado as flores e as deixado no campo nutrem receios de maus encontros com agentes de fiscalização. Ainda que não fosse uma obrigação, Deni sabe que só assim o capim poderá renascer nas veredas.
Chegando na rancharia, enquanto Iracema e Belarmina preparam o cozido, Deni e Dieison se dedicam a esta que é uma etapa bastante trabalhosa. Munidos de facas bem amoladas e apoiando os maços sobre uma das pernas, algumas horas são necessárias para finalizar a tarefa.
A separação dos maços
visa deixá-los numa divisão que facilite a pesagem e a venda. Do grupo, apenas
Belarmina, irmã de Deni, tem habilidade na costura
do capim. Ela faz brincos, mandalas e pequenos vasos, como um que ela me
presentou.
A maior parte desta colheita, entretanto, já estava reservada para um compadre. Outra parte seria vendida para a associação de artesões no valor de quarenta reais o quilo. O restante foi deixado em reserva para o período no qual não é permitido coletar (sobretudo de março a agosto), quando o preço tende a ser mais elevado
A venda se dá no peso. Para isso, Deni utiliza a balança jalapoeira. O aparelho, de mais de trinta anos, foi feito artesanalmente com um pedaço de pau louro, cuja madeira lisa, leve e uniforme é amarrada com arame e corda na extremidade. O movimento da argola provocado pelo peso do maço indicará o peso final de até 16 quilos. Nesta imagem, Deni está pesando um maço de 3,5 quilos coletado por Dieison e vendido a um compadre.
Guilherme Moura Fagundes é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília, com estágio sanduíche no Laboratoire d’Anthropologie Sociale (LAS – Collège de France/EHESS, Paris). Atua nas áreas de antropologia da técnica, ambiental e das formas de vida, com ênfase na interface entre populações tradicionais e conservação da agrobiodiversidade no Cerrado e na Amazônia.
Contato: guilhermefagundesantro@gmail.com
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