Dona Nena, guardiã do Cerrado Baiano
Um caso curioso ocorre de tempos em tempos nas comunidades que dependem do Rio Correntina e do Rio Arrojado, Oeste baiano, Cerrado baiano. Todo mês de outubro e novembro, maio e junho, a população, seja adulto ou criança, sofre de diarreia a ponto de ir parar no hospital.
A coincidência é que isso sucede no mesmo período em que os grandes fazendeiros estão plantando soja ali próximo. “O diagnóstico é pela experiência, pela prática da gente, e temos certeza que é por causa dos agrotóxicos”, afirma a Adalgisa Maria, mais conhecida como Dona Nena, agente comunitária de saúde e ribeirinha que vive na comunidade de São Manoel, nas margens do Rio Arrojado, Bahia.

Ainda subnotificado, de acordo com o Ministério da Saúde, entre os anos de 2007 e 2015, houve um total acumulado de mais de 84 mil casos registrados de intoxicações por agrotóxicos no Brasil, só as mulheres eram 44,3% dos casos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 2% dos casos de contaminação por agrotóxicos são notificados.
“É um tempo de muita agressividade”, diz preocupada. O agronegócio não parou com a pandemia e não respeita os territórios, segundo Dona Nena os grileiros continuam ameaçando, tanto que recentemente derrubaram dois fechos de pasto que tinham mais de 100 anos. A ganância de tal modelo de produção possibilita que o governo da Bahia libere outorgas de água e de desmatamento, favorecendo o agronegócio que, como pontua a ribeirinha, não se importam com o povo e, muito menos, traz benefícios à comunidade. Acabam com as águas dos rios, não investem na terra, e ainda importam os recursos naturais da região junto com as carnes e a soja.
“A gente caminha seis horas dentro de uma fazenda e ainda não chega no final da fazenda. Tudo desmatado e precisa desmatar mais? Muitas fazendas são abandonadas e os fazendeiros estão entrando para dentro do mato, e o desmatamento vai ficando para trás. Todo ano a gente planta naquele mesmo lugar, só faz arar a terra e colocar esterco, porque eles [agronegócio] não fazem do mesmo jeito?”, questiona.
Violência à terra e aos corpos das mulheres
A agente de saúde também ressalta o quanto essa violência impacta no modo de vida das mulheres que colhem frutos para o alimento, o Capim Dourado para fazer seus artesanatos, o Buriti, o Pequi, o Cascudo para fazer sabão. “É um embate pela terra e pela água, porque se não tem água a pessoa fica sem terra. É da água que tiram o seu ganha pão, colocam comida na mesa de brasileiros. Tem um ditado que diz: se o roçado não planta, a cidade não janta”, lembra.
“Foi as mulheres que realmente inventaram a agricultura. São as mulheres que conhecem, sabem e valorizam a agricultura e, principalmente, o Cerrado. Por isso que a gente luta e a gente grita que o Cerrado é do povo”, diz Dona Nena.
A ribeirinha ainda não deixa de mencionar o quanto a violência continua tentando parar a vida das mulheres. Jovercina e Anália são mulheres, trabalhadoras camponesas e mães, que tiveram suas vidas tiradas pelo feminicídio, ambas foram mortas pelos companheiros. Mártires que inspiram, dão força e foco para Dona Nena continuar lutando. Ela também cita outras como Marielle Franco, irmã Dorothy Stang e Margarida Alves. “É pelo sangue delas, pela voz delas, pelas lutas delas que a gente continua lutando mesmo agora nesse tempo de pandemia”.

Conforme o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a violência contra as mulheres tem sido uma constante no campo brasileiro, só em 2019, 102 camponesas, indígenas, quilombolas e lideranças foram vitimadas por assassinato, ameaça de morte, prisão, intimidação entre outras formas de violência. O relatório de Conflitos no Campo Brasil de 2018, revela que entre os anos de 2009 e 2018, cerca de 1.409 mulheres sofreram algum tipo de violência, porém faltam dados sobre expulsões e despejos. A mesma pesquisa demonstra que apenas no ano de 2018 foram computados 482 casos de mulheres do campo que sofreram algum tipo de violência, 409 receberam ameaças de morte, o maior índice desde 2008.
A tecnologia da terra, de animar a terra, está nas mãos das mulheres, das camponesas agricultoras, e isso é recorrente na fala da ribeirinha e das mulheres que lutam pela vida e pelo bioma vivo. “O Cerrado é o nosso criador, nosso pai. Ele nos ensina práticas de perseverança, de cuidado, de zelo. Ensina, principalmente, que a gente pode usar dele, pode viver o tempo dele, pode usar de tudo, de medicina, de alimentação e ainda tem, se a gente tiver o cuidado”, diz com a palavra carregada de significados que perpassam anos de experiência e certeza de que o caminho é esse.
“Se acabar o Cerrado, acaba também o Brasil e o mundo. Porque o Cerrado é um dos biomas que sustenta o mundo. É onde está o potencial de água doce do mundo. Junte-se a nós na defesa desse bioma”.
Dona Nena, guardiã do Cerrado Baiano.
Arte em Destaque: Júlia Barbosa | Edição: Renato Silva.
Autora: Ludmila Almeida 28/07/2021
Fonte: https://favelaempauta.com/guardias-do-futuro/