A pesca artesanal garante a segurança alimentar e nutricional da sociedade brasileira. Cerca de 70% do pescado produzido no país é proveniente deste modelo de produção. Além da importância econômica, os pescadores e pescadoras artesanais desenvolvem uma série de saberes, fazeres e sabores que representam elementos culturais de matriz indígena e afro-brasileira. Ao praticarem essa atividade milenar, as comunidades pesqueiras estabelecem uma relação bastante peculiar com os recursos naturais, o que garante a preservação dos seus territórios, bem como sua reprodução física e cultural. De acordo com a Secretária Nacional do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) no Brasil existem, aproximadamente, um milhão e meio de pescadores artesanais.
Os nomes variam a depender do lugar, mas há muito de comum, como o fato de que, a partir do saber tradicional, herdado e acumulado ao longo de gerações observando e convivendo com a cheia e a vazante dos rios, as comunidades tradicionais e os povos indígenas de diversas regiões do Cerrado têm nas águas parte integral de seu território. É ali, no movimento dos rios, que esses povos e comunidades obtêm seus alimentos e sustento por meio da pesca dos peixes que a cheia traz, da roça de sequeiro, lameiro ou vazante e, no caso das comunidades retireiras do Araguaia, o pastoreio do gado “na larga”.
Além dos modos de vida serem adaptados ao ciclo das águas de cada lugar, os nomes também têm singularidades. Estas comunidades tradicionais se autoidentificam, além de pescadores artesanais, como vazanteiros e lameiros. Nas barrancas do São Francisco, em Minas Gerais, há uma diversidade de modos de vida a configurarem múltiplos signos identitários, apresentando uma heterogeneidade das “gentes do rio” a consolidarem uma cultura sanfranciscana – conjunto de relações intimamente ligadas ao rio – marcadas por peculiaridades de grupos sociais nos processos de autoidentificação. Tem muita coisa que é comum, em especial o cuidado e o aprendizado cotidiano com o ritmo das águas, mas assim como em cada lugar tem um jeito, o nome às vezes muda também.
O Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP) é formado por homens e mulheres que produzem alimentos saudáveis e contribuem para a soberania alimentar do país. O trabalho desses grupos preserva as águas, as florestas, os manguezais e a cultura dos nossos ancestrais. “Somos Pescadores e Pescadoras e lutamos para defender o nosso território”.
Existe em tramitação o Projeto de Lei do Território Pesqueiro para o reconhecimento, proteção e garantia do direito ao território de comunidades tradicionais pesqueiras, tido como patrimônio cultural material e imaterial sujeito a salvaguarda, proteção e promoção, bem como o procedimento para a sua identificação, delimitação, demarcação e titulação.
Projeto de Lei pelo Território Pesqueiro tramita na Câmara dos Deputados como PL 131/2020. A proposta legislativa elaborada pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras artesanais (MPP), com o apoio de organizações sociais, juristas e pesquisadores, foi entregue na Câmara dos Deputados em novembro de 2019, no dia mundial da pesca (21/11), acompanhado de milhares de assinaturas em apoio à proposta legislativa. Na ocasião, o projeto foi recebido pela Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados, que após análise, apresentou o Projeto de Lei (PL) à casa, no dia 5 de fevereiro desse ano, para passar por todos os trâmites necessários para ser aprovado como lei.
Resultado de várias lutas dos movimentos pesqueiros, o projeto de lei motivou uma campanha, que nos últimos sete anos debateu e esclareceu sobre a importância de uma lei que garanta o Território Pesqueiro e a permanência das comunidades pesqueiras que nele habitam. A ideia inicial era que o projeto fosse apresentado como uma Lei de Iniciativa Popular, mas a dificuldade e a burocracia de conseguir 1,4 milhões de assinaturas, com o atencioso registro de documentos eleitorais, conforme exigido pela Constituição, provou-se uma tarefa difícil no atual contexto político. Na verdade, desde que o dispositivo legal para a criação de leis de Iniciativa Popular foi previsto pela Constituição de 1988, apenas quatro projetos de lei conseguiram ser aprovados dessa forma. Por isso, o MPP optou por apresentar a lei em diálogo com a Comissão de Legislação Participativa, que assina o projeto como proponente.
“O que este projeto de lei faz, essencialmente, é reafirmar as comunidades tradicionais pesqueiras como sujeitos coletivos de direitos territoriais que em virtude de importantes peculiaridades na conformação de seus territórios merecem uma abordagem integral capaz de articular direito à terra e água, o direito do comum a compor a titularidade desses territórios essenciais de trabalho e vida. A pretensão popular da iniciativa do projeto de lei é um recado inadiável para a superação da invisibilidade, da segmentação, da precariedade, da transitoriedade, excepcionalidade e discricionariedade marcadoras do relacionamento histórico do Estado brasileiro com a pesca, os pescadores e as comunidades pesqueiras, além de traçar diretrizes de políticas públicas para as comunidades pesqueiras que estejam à altura de sua importância econômica, cultural e ambiental para todos nós” Pedro Diamantino, professor de Direito da UNEB e advogado popular.
Nós camponeses e camponesas, pescadores e pescadoras artesanais, indígenas, povos de terreiros e quilombolas do São Francisco, movimentos sociais e pastorais, decidimos “Virar Hoje Carranca, pra Defender o Velho Chico”. Nada melhor do que abrir nossas lamúrias e anunciar vida, no chamado “parlamento da Bacia do Rio São Francisco”.
Constatamos indignados nos últimos dez anos, a morte gradativa do Velho Chico. Por causa das barragens hidrelétricas, vimos muitas espécies de peixes desaparecerem, diminuírem em tamanho e qualidade, em função da baixa vazão provocada pela Chesf.
Constatamos embravecidos, o Cerrado e a Caatinga serem brutalmente desmatados e as matas ciliares desaparecerem para dar lugar aos grandes empreendimentos (turísticos, grandes irrigações, especulação imobiliária, mineração, aquicultura…) e ações privatistas das terras de beira rio que vem impedindo os pescadores artesanais de terem acesso às águas, ilhas, lagoas e manguezais, como no caso dos mangues da Foz do Velho Chico espoliado com a carcinicultura.
Constatamos exasperados a terra e a água sendo contaminadas por altos índices de agrotóxicos e adubos químicos, empreendidos pelo agronegócio devastador, inclusive por órgãos como a CODEVASF.
Constatamos as Cidades e povoamentos, continuarem jogando lixo e esgotos no Rio São Francisco, e vimos nesta região muitos parasitas e corpos estranhos presentes em nosso ecossistema, e o poder público com projetos enganadores de esgotamento sanitário e poucas ou nenhumas medidas satisfatórias serem realizadas.
Constatamos indignados, que a baixa vazão vem provocando altos índices de poluição como a ‘mancha escura’ nas águas do Cânion São Francisco que deixou cidades e povoados sem abastecimento de água e o problema ainda permanece, sobretudo, nos povoados ribeirinhos, comprometendo inclusive, a qualidade do pescado e sua comercialização.
Constatamos ainda, o surgimento das cianobactérias e cianotoxinas na barragem de Serrinha, em Serra Talhada-PE, cujas águas estão impróprias para o consumo humano e para a pesca. A saber, a cianotoxina além de ser resistente à fervura da água, provoca câncer.
Diante desta situação crítica, não podemos acreditar que a seca, enquanto fenômeno natural do Semiárido, seja responsabilizada mais uma vez por este colapso, sendo que os grandes irrigantes continuam usando a mesma quantidade de água para o agronegócio de exportação e a Chesf mantem uma baixa vazão para geração de energia. Sabemos que o que interessa para Chesf e para a lógica do atual modelo de desenvolvimento econômico predador é o estoque da perspectiva futura da matriz energética, com mais barragens e ainda usina nuclear propostas para a região de Itacuruba – PE, além dos canais da transposição do rio e as mini-transposições como o canal do Sertão em Alagoas para irrigar terra de rico.
Diante destas e outras questões, propomos verdadeiramente uma POLÍTICA DE REVITALIZAÇÃO DO SÃO FRANCISCO, que leve em consideração as reflexões e as necessidades do povo, começando com uma REVITALIZAÇÃO DO PRÓPRIO COMITÊ DE BACIA, como:
· Não podemos aceitar mais, o desrespeito com que o Comitê de Bacia tem tratado o povo do rio, em especial os pescadores artesanais, colocando-os na mesma categoria com turismo e lazer na cadeira de representação no Comitê, demonstração da falta de reconhecimento das comunidades pesqueiras como tradicionais, desconsiderando, a Convenção 169 do qual o Brasil é consignatário e o Decreto 6.040/2007 que trata sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT. Portanto, os pescadores artesanais não podem continuar a ser vistos como os predadores do São Francisco, mas, como “guardiões do Rio”, pois de fato são eles os guardiões.
· Queremos um Comitê de Bacia autônomo que leva em consideração as reflexões e necessidades do povo, que construa ações efetivas e articuladas de Revitalização do São Francisco com: saneamento básico e convivência com o Semiárido, uso sustentável e racional da terra e da água, manutenção e proteção da biodiversidade e ecossistemas do rio, recuperação de matas e nascentes, melhoria da qualidade da agua e a proteção as populações que possuem um modo de vida diferenciado culturalmente e socialmente. Precisamos reaprender com nossos ancestrais, o que talvez perdemos a muito tempo atrás, a convivência sábia e equilibrada com os rios, matas, bichos e gentes. Voltemos a ser humanos Hoje, para que assim construamos um modelo de desenvolvimento capaz de gerar vida e não morte.
Subscrevemos,
· Povo Indígena Truká-Tupan de Paulo Afonso
· Povo de Terreiro – Abassà da Deusa Oxum de Idejemim
· Movimentos dos Pequenos Agricultores – MPA
· Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP
· Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP
· Colônia de Pescadores Artesanais Z26 de Delmiro Gouvéia – AL
· Colônia de Pescadores Artesanais Z30 de Piranhas – AL
· Colônia de Pescadores Artesanais de Petrolândia – PE
· Colônia de Pescadores Artesanais Z 86 de Glória – BA
· Associação de Pescadores e Pescadoras Artesanais de Olho D’Água do Casado – APESCA
· Associação de Pescador Artesanal do Povoado Salgado – SALGATUBA PESCA
· Associação Quilombola da Comunidade Cruz
· Instituto Acção
· Sociedade Brasileira de Ecologia Humana – SABEH
· ACRANE – Associação Cultural Raízes Nordestinas
· AGENDHA – Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza Desenvolvimento Humano e Agroecologia
· Território da Cidadania de Itaparica
Paulo Afonso – BA, 28/05/2015.