Terra, água, fogo e ar!
O Sistema Biogeográfico do Cerrado não pode ser entendido como uma unidade zoogeográfica particularizada porque não apresenta esta característica, tampouco pode ser considerada uma unidade fitogeográfica, porque não se trata de uma área uniforme em termos de paisagem vegetal. O mais correto é correlacionar os diversos fatores que compõem a sua biocenose – os rios, a população humana e outros elementos, como a geologia, a geomorfologia, o clima, solos, fisionomia vegetal, quantidade de água nos lençóis, comunidades animais, etc – e defini-la como um Sistema Biogeográfico, como propõe Altair Barbosa (1996).
O que caracteriza essa área é a alternância de formas topográficas representadas pelos relevos planálticos, morros de altura variada e depressões estreitas ou amplas. Dependendo da espessura e da composição dos solos, as fisionomias dos cerrados e de outros tipos de vegetação podem estar nitidamente separadas ou podem confundir-se em contatos pouco nítidos.
Há áreas de pequenas superfícies, em que quase todas as fisionomias, como matas de nascente, de galerias e de vereda são encontradas, constituindo-se em mosaico vegetal. Os tipos de vegetação que recobrem a grande área do pantanal de Mato Grosso têm sido considerados como uma unidade sob a designação de Complexo do Pantanal. Essa expressão, embora registrada por um bom número de pesquisadores e consagrada na literatura científica, não deve ser mantida quando se referir aos mapeamentos de 1:1.000.000 e maiores, o que na verdade se observa nessa extensa planície é a influência da topografia em função das enchentes periódicas.
Maior ou menor tempo de permanência da água, superficial e subsuperficial, está inteiramente dependente das feições topográficas e do solo. Variações de apenas alguns centímetros podem definir a ocorrência de matas, campos limpos, carandazais, campos permanentemente inundados etc.
Em 1948, Waibel estudou a vegetação e o uso da terra no Planalto Central do Brasil e, ao constatar que em áreas muito limitadas sob mesmas condições climatológicas, pode-se encontrar uma grande variedade de tipos de vegetação, concluiu que esta variedade depende principalmente das condições edáficas que, por sua vez, dependem das rochas que originam os solos.
O mesmo autor, baseando-se em conceitos dos agricultores locais, afirma que há dois grandes tipos de solos na região dos cerrados: os solos de matas e os solos dos campos. Análises têm sempre revelado que os solos de cerrados (de campos) são sempre mais pobres que os de matas.
Alvim e Araújo, autores que também destacam a importância do solo para a compreensão dos cerrados afirmam, por exemplo, que a distribuição desta paisagem em sua região fitogeográfica é aparentemente controlada pelo solo, mais que por qualquer outro fator ecológico. Segundo esses autores, as plantas dos cerrados parecem ser tolerantes a um baixo teor de cálcio e a um ph baixo, o que não permite o crescimento de árvores típicas das florestas.
Arens, admite que o pronunciado xeromorfismo (escleromorfismo foliar) do cerrado seja uma consequência das condições oligotróficas dos solos, que são geralmente ácidos e empobrecidos em bases trocáveis. Afirma ainda que um dos fatores principais seria provavelmente a relativa escassez de nitrogénio assimilável, o que pode originar o escleromorfismo oligotrófico, fazendo com que a vegetação peculiar do cerrado seja selecionada pela deficiência de minerais, à qual ter-se-ia adaptado.
Em trabalho posterior, o mesmo autor afirma que as deficiências minerais limitam o crescimento e, em consequência, causam acúmulo de carboidratos. O excesso de açúcares é utilizado para formação de cutículas espessas de esclerênquima para produção, em resumo, de estruturas que dão à planta o caráter escleromorfo.
Goodland, ao estudar os solos do Triângulo Mineiro, estabelece uma relação entre os gradientes de fertilidade do solo com as diversas fisionomias dos cerrados. Variam, do cerradão ao campo limpo de cerrado, os seguintes fatores: ph, percentagem de carbono e nitrogénio, matéria orgânica, teor Ca+++, Mg++ K+ Al+++, percentagem de alumínio, fosfatos e relação C/N.
Assim, o solo do cerradão ocupa a extremidade mais alta do gradiente, por apresentar teores elevados de matéria orgânica (N, P, K) Ca, Mg e ph mais alto, baixa relação C/N e quantidades menores de alumínio.
Há uma estreita relação entre a riqueza orgânico-mineral do solo e as fisionomias do cerrado. O xeromorfismo resulta também, em grande parte, da carência de micronutrientes do solo. Essa carência ou oligotrofismo limita o uso dos produtos de fotossíntese, os quais ficam acumulados em determinadas partes das plantas, dando-lhes o aspecto escleromórfico. Também o nanismo das plantas do cerrado é atribuído à carência de micronutrientes, como N, P e S, que são indispensáveis para a síntese das proteínas que entram no desenvolvimento normal de novos tecidos.
A tortuosidade dos galhos das árvores do Cerrado, que estão geralmente em um subsistema particular, o stricto sensu, ocorre por causa da pobreza do solo. O solo é o oligotrófico, carente de nutrientes básicos, então a planta suga o máximo possível e acumula açúcar que se aloja na bifurcação das plantas, dando-lhes essa característica.
Qualidade nutricional dos solos do Cerrado: um outro ponto de vista
Ana Maria 05/09/2011
O Cerrado é um ecossistema cujos solos apresentam, de forma geral, baixa disponibilidade de nutrientes para as plantas (Lepsch 2002; Haridasan 2005; 2008). Esta questão é bastante discutida pela comunidade científica e amplamente divulgada em revistas de circulação nacional e internacional. A informação de que os solos do Cerrado são nutricionalmente pobres também é largamente transmitida ao grande público, principalmente por meio de publicações e de programas de extensão promovidos por instituições públicas (universidades e empresas ligadas ao governo) e empresas privadas relacionadas ao agronegócio. De acordo com tais divulgações, no Cerrado há predomínio de solos cujas análises químicas apontam baixo pH (elevada acidez), alta concentração de alumínio (tóxico para a maioria das plantas cultivadas) e reduzida disponibilidade de nutrientes como o nitrogênio, o fósforo e o potássio, que são essenciais para o crescimento das plantas. Assim, expressivas quantidades de calcário e de fertilizantes normalmente são recomendadas e aplicadas para tornar tais solos produtivos para as culturas agrícolas (Lepsch 2002).
Apesar disso, a qualidade nutricional dos solos do Cerrado é uma questão que parece depender muito do ponto de vista. Haridasan (2008) destacou que o conceito de deficiência nutricional, bem estabelecido na agricultura, não deve ser estendido indiscriminadamente às plantas nativas em ecossistemas naturais. Nesse contexto, quando a disponibilidade de nutrientes é avaliada com base em critérios agronômicos, ou seja, em relação aos requerimentos nutricionais de plantas cultivadas tais como a soja, o milho, o sorgo, o algodão, entre outras, os solos do Cerrado realmente são pobres em nutrientes e muitas vezes necessitam da aplicação de fertilizantes para que tais culturas apresentem boa produtividade. Por outro lado, quando a disponibilidade de nutrientes é avaliada com base nos requerimentos nutricionais das plantas nativas do Cerrado, não é prudente afirmar que seus solos são pobres.
Há diversas evidências indicando que a maioria das espécies de plantas lenhosas nativas do Cerrado está adaptada à disponibilidade natural de nutrientes dos solos sobre os quais elas crescem, incluindo o fato de sua própria existência e manutenção temporal. Explorando a quantidade de nutrientes naturalmente disponíveis no solo, as espécies de plantas nativas do Cerrado conseguem completar todo o seu ciclo de vida, o que é um indicativo de que a qualidade nutricional do solo não é fator limitante para sua sobrevivência e perpetuação ao longo do tempo. Além disso, mesmo sobre solos pobres do ponto de vista agronômico, é conhecido que a vegetação lenhosa das formações savânicas (vegetação mais aberta) do Cerrado tem grande capacidade de resistir à ocorrência de distúrbios, tais como a entrada de fogo e a derrubada, e de rapidamente se recuperar após as perturbações.
A elevada riqueza de espécies vegetais no bioma Cerrado é um fator que reforça a opinião de que os solos deste ecossistema não são pobres em nutrientes em relação às necessidades das plantas nativas. Atualmente, estão descritas e catalogadas mais de 12.300 espécies nativas de plantas (Mendonça et al. 2008) e a porcentagem de espécies endêmicas (que não ocorrem em outros lugares) chega a 44% (Silva & Bates 2002). Estes fatores contribuíram para que o bioma Cerrado fosse incluído entre os 34 ecossistemas prioritários para a conservação no planeta Terra (Mittermeier et al. 2004).
A concentração de nutrientes nos tecidos vegetais (folhas, por exemplo) das espécies lenhosas do Cerrado também pode indicar baixos requerimentos nutricionais. Os resultados do estudo conduzido por Haridasan (2005) em áreas de cerrado sentido restrito, uma formação savânica do bioma Cerrado com cobertura arbórea variando entre 5% e 70% (Ribeiro & Walter 2008), indicam que de forma geral as espécies lenhosas mais abundantes são justamente as que apresentam as menores concentrações de nutrientes nos tecidos vegetais. Segundo Haridasan (2005), este padrão indica que as espécies mais abundantes requerem menores quantidades de nutrientes em relação às menos abundantes, o que pode ser uma vantagem competitiva em relação às propriedades químicas normalmente observadas nos solos do Cerrado.
Tomadas em conjunto, as evidências aqui apresentadas sugerem que a disponibilidade de nutrientes nos solos do bioma Cerrado é uma questão que deve ser avaliada e discutida com cautela, principalmente em relação ao ponto de vista que a classifica. Os solos do Cerrado podem ser pobres em nutrientes quando comparados aos solos de outros ecossistemas brasileiros e em relação aos requerimentos nutricionais de plantas cultivadas, mas não o são em relação à vegetação nativa, que parece estar muito bem adaptada à disponibilidade natural de nutrientes. Sugerimos que futuras discussões relacionadas ao estado nutricional dos solos do bioma Cerrado incluam os dois pontos de vista aqui destacados (agronômico e ecológico), principalmente no meio acadêmico.
Bibliografia
Haridasan, M. 2005. Competição por nutrientes em espécies arbóreas do cerrado. In: Scariot, A.; Sousa-Silva, J.C. & Felfili, J.M. (Orgs.). Cerrado: ecologia, biodiversidade e conservação. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. p.167-178.
Haridasan M. 2008. Nutritional adaptations of native plants of the cerrado biome in acid soils. Brazilian Journal of Plant Physiology 20(3): 183-195.
Lepsch, I.F. 2002. Formação e conservação dos solos. São Paulo: Oficina de Textos. 178p.
Mittermeier, R.A.; Gil, P.R.; Hoffmann, M.; Pilgrim, J.; Brooks, T.; Mittermeier, C.G.; Lamoreux, J. & Fonseca, G.A.B. 2004. Hotspots revisited: Earth’s biologically richest and most endangered terrestrial ecoregions. Mexico City: CEMEX. 392p.
Mendonça, R.C; Felfili, J.M.; Walter, B.M.T.; Silva Júnior, M.C.; Rezende, A.V.; Filgueiras, T.S.; Nogueira, P.E. & Fagg, C.W. 2008. Flora Vascular do Bioma Cerrado. In: Sano, S.M.; Almeida, S.P. & Ribeiro, J.F. (Eds.). Cerrado: ecologia e flora. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica. p.421-1.279.
Ribeiro, J.F. & Walter, B.M.T. 2008. As principais fitofisionomias do Bioma Cerrado. In: Sano, S.M.; Almeida, S.P. & Ribeiro, J.F. (Eds.). Cerrado: ecologia e flora. Planaltina: Embrapa-CPAC. p.151-212.
Silva, J.M.C & Bates, J.M. 2002. Biogeographic Patterns and Conservation in the South American Cerrado: A Tropical Savanna Hotspot. BioScience 52(3): 225-233.
* Henrique Augusto Mews é biólogo, doutorando em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UnB) (henriquemews@gmail.com). Divino Vicente Silvério é biólogo, doutorando em Ecologia pela UnB (dvsilverio@gmail.com). José Roberto Rodrigues Pinto é engenheiro florestal, doutor em Ecologia e professor do Departamento de Engenharia Florestal da UnB (jrrpinto@unb.br).
Em trabalho intitulado “Climatologia dos Cerrados”, Reis faz considerações sobre o binômio clima/vegetação. Desse trabalho, destacam-se algumas conclusões, como a de que a vegetação de cerrado não é xerófita — logo, estará na dependência de um clima subúmido; a condição climática que determina o cerrado é a mesma responsável pelo aparecimento da mata; uma vez satisfeita a condição climática, o cerrado aparecerá ou não, na dependência de fatores edáficos, de ordem nutricional; as diferenças de regime hídrico e térmico em certos limites não implicam em modificações sensíveis na fisionomia da vegetação do cerrado.
Camargo, considerando as influências climáticas do ponto de vista dos aspectos micro, topo e macro climáticos, afirma que, dada a escassa cobertura vegetal, as temperaturas do ar e a umidade variam muito no decurso do dia. O autor sugere que essa condição microclimática severa é antes consequência que causa da vegetação, também, o topoclima tem efeito limitado sobre a vegetação natural. Essa vegetação é encontrada sob várias condições macroclimáticas.
Um dos estudos mais exaustivos sobre Climatologia do Brasil foi apresentado por Nimer em 1977. Dentre outras observações, o autor reconhece que o domínio de um clima quente e semi-úmido, com quatro a cinco meses secos, empresta ao clima da região Centro-Oeste do Brasil uma notável homogeneidade e esta, por sua vez, é reforçada pela uniformidade de seu sistema geral de circulação atmosférica.
A essa homogeneidade climática corresponde uma paisagem vegetal constituída pelos cerrados, em sentido lato, quebrada localmente por outros componentes do meio natural, tais como topografia, litologia e solos.
O Caráter Xeromorfo dos Cerrados
Revestindo o solo especialmente com gramíneas, entre as quais repontam ervas, arbustos e árvores em proporções variáveis, a vegetação do cerrado impressiona sobretudo pelo aspecto tortuoso de suas árvores e arbustos, cujos caules, com frequência, recobrem-se de espessa casca com folhas coriáceas e brilhantes ou revestidas por um denso conjunto de pêlos, emprestando, ao cerrado, a aparência de vegetação adaptada às condições de seca.
Não é de estranhar, pois, que até recentes anos fosse o cerrado chamado frequentemente de “campo seco”. Contribuía para isso o fato de ocorrer tal vegetação, muitas vezes, em regiões onde é comum um período de 4 a 5 meses totalmente sem chuvas.
Parece não haver dúvida quanto a ter sido Rawitscher o primeiro a considerar seriamente a possibilidade de que a vegetação de cerrado não fosse condicionada pela falta de água.
Levaram-no a isso, observações casuais nas frequentes viagens feitas em várias partes do Estado de São Paulo, onde visitou cerrados, especialmente em Emas, próximo a Pirassununga.
Folhas enormes, que muitas plantas de cerrado apresentam, ausência de sinais de murchamento, mesmo no auge da seca, floração e brotação abundantes antes das chuvas, pareciam contradizer a noção geral de que a existência dos cerrados fosse devido à escassez de água.
Essas observações iniciais de Rawitscher conduziram a uma série de trabalhos posteriores de outros pesquisadores, no sentido de desvendar o aspecto de xeromorfismo que caracteriza a vegetação de cerrado.
O primeiro trabalho experimental foi conduzido pelo próprio autor, com a colaboração de Ferri e Rachid (1943), no cerrado de Emas a São Paulo. Entre as muitas conclusões, os autores afirmam que a água não é um fator limitante da vegetação de cerrado.
Em trabalho mais extenso, de 1944, no qual observa o comportamento estomático e de transpiração, Ferri chega às mesmas conclusões, evidenciando que a vegetação de cerrado de Emas não se comporta, apesar de seu acentuado xeromorfismo, como adaptada à condições de seca.
Em 1955 Ferri publicou um extenso trabalho intitulado “Contribuição ao conhecimento da ecologia do cerrado e da caatinga: estudo comparativo do balanço d’água de sua vegetação”. Na introdução, o autor caracterizou os vários tipos de vegetação que ocorrem no Brasil e indicou sua distribuição. A seguir, focalizou a atenção nos ambientes em que vivem as plantas dos cerrados (em Emas) e da caatinga (em Paulo Afonso). Apresentou, depois, uma descrição fisionómica dos dois tipos de vegetação, cuja composição florística também analisou. Entrou, finalmente, no estudo pormenorizado de problemas morfológicos, especialmente da anatomia das folhas, da transpiração, do comportamento estomático, dos déficits de saturação, entre outros relativos a um grande número de espécies características dos dois tipos de vegetação que estudou e comparou.
Fatos já descritos em trabalhos anteriores foram postos em destaque: grande profundidade dos solos dos cerrados; abundância de água nesse solo; profundidade considerável dos sistemas radiculares das plantas permanentes; presença frequente de estrutura xeromorfa na vegetação do cerrado, como estômatos em depressões, epidermes revestidas por cutículas espessas e camadas cuticulares ou recobertas por numerosos pêlos ou escamas, presença de hipoderme e parênquimas incolores, células pétreas e esclerênquimas bem desenvolvidos etc. Todos esses elementos são, habitualmente, correlacionados com condições xéricas. E, no entanto, o estudo do comportamento da vegetação do cerrado não indica a adaptação a tais condições que, em verdade, não existem.
A grande maioria das plantas permanentes dos cerrados transpiram livremente e com altos valores, mesmo nos períodos de secas mais pronunciadas; somente poucas mostram pequena restrição no consumo hídrico nessa época.
As plantas do cerrado mostram, quase sem exceção, estômatos abertos durante todo o dia, mesmo durante a seca. Também é comum encontrá-los abertos à noite. Em geral, as reações estomáticas das plantas permanentes do cerrado são lentas. O fechamento total das fendas estomáticas, quando se faz cessar o suprimento hídrico arrancando a folha da planta, pode consumir em uma hora ou mais e, às vezes, nunca se completa inteiramente. A transpiração cuticular é frequentemente muito elevada, embora as cutículas e as camadas cuticulares sejam espessas. Os déficits de saturação das folhas são baixos, em geral, mesmo na época seca. O valor mais alto encontrado foi da ordem de 5% do conteúdo máximo de água.
Embora restritas a um habitat muito mais seco, a maioria das espécies dominantes da caatinga (exceto as bromeliácea, as cactáceas e as euphorbiaceae suculentas) não apresentam xeromorfismo tão acentuado quanto as plantas do cerrado.
Assim, não são frequentes cascas espessas nem folhas coriáceas ou pilosas. Cutículas grossas, estômatos em depressões, abundante tecido mecânico são também incomuns. Embora com xeromorfismo menos pronunciado que o da vegetação do cerrado, as plantas da caatinga revelam-se melhor adaptadas, fisiologicamente, para sobreviverem em condições xéricas.
Mesmo durante a época das chuvas, várias plantas já revelam necessidade de restrição do consumo hídrico, ficando com estômatos abertos somente nas primeiras ordens do dia; outras, após fecharem os estômatos nas horas e condições mais severas, reabrem-nos à tardinha. Muito poucas podem manter estômatos abertos durante o dia.
À medida que se agrava a seca, curvas de transpiração indicativa de grande restrição no consumo hídrico tornam-se cada vez mais frequente. Por fim, quase todas as plantas mantêm os estômatos fechados durante todo o dia. Nesse caso, a água é perdida apenas por meio da cutícula e essa perda-transpiração cuticular na caatinga geralmente é muito baixa, mas até isso pode pôr a planta em perigo, então um dos meios mais eficientes de proteção contra a seca é reduzir consideravelmente a superfície transpirante pela queda das folhas. Isso é o que realmente ocorre, e planta após planta se despoja de suas folhas. Alguns indivíduos das espécies mais resistentes persistem enfolhados, porém até eles derrubam suas folhas quando a seca é realmente severa.
Em contraste com as plantas permanentes do cerrado, as árvores e arbustos da caatinga têm estômatos de reações muito rápidas. A Spondias tuberosa, Arruda, por exemplo, reduz mais de 50% do valor inicial de sua transpiração em apenas dois minutos após cessar o suprimento de água e completa fechamento estomático em cinco minutos.
A transpiração cuticular indica, geralmente, valores muito baixos na caatinga, apesar de não serem espessas as cutículas.
O autor considerou ainda que a caatinga vive em condições de seca muito mais pronunciada que o cerrado e é fisiologicamente adaptada a essas condições, embora não tenha um xeromorfismo tão acentuado quanto o cerrado, o qual, no entanto, não apresenta adaptação fisiológica a ambiente seco, o que induz à conclusão de que o que importa realmente é a adaptação fisiológica, mas o autor considerou que duas questões importantes devem ser resolvidas: l) se a vegetação do cerrado não vive, em geral, em ambiente seco, por que é xeromorfa? 2) porque não se desenvolveram na caatinga, com maior frequência, caracteres xeromorfos, ao lado dos mecanismos fisiológicos de proteção contra a seca? Não dariam eles proteção adicional às plantas contra a perda de água?
O autor tentou responder a primeira questão por meio de duas formas:
- a) O xeromorfismo do cerrado nada tem a ver com proteção contra a seca, tendo-se originado por qualquer outra razão;
- b) A vegetação do cerrado pode, eventualmente, estar sujeita a secas pouco severas, contra as quais basta a proteção de pêlos, cutículas espessas, estômatos aprofundados etc. A vegetação do cerrado não teria estado sujeita a um estímulo bastante forte, durante seu processo evolutivo, para desenvolver e selecionar mecanismos fisiológicos de proteção contra a seca. Tal seleção teria ocorrido, entretanto, no ambiente mais seco da caatinga.
Com respeito à segunda questão, o autor considerou que, durante a evolução da vegetação da caatinga, sempre que o xeromorfismo aparece isolado não pode ser fixado, pois, não dando proteção satisfatória contra a perda de água, permitiu que morressem as espécies às quais isso sucedeu. Quando surgiram apenas os mecanismos fisiológicos de proteção contra a seca, eles puderam ser selecionados, pois, dando suficiente proteção às espécies que os envolveram, permitiram-lhes a sobrevivência.
Por que, entretanto, não pode ser selecionado um número maior de espécies em que os dois grupos de mecanismos de proteção apareceram reunidos? Para explicar tal fato, o autor admitiu que o xeromorfismo deve ser, de qualquer forma, prejudicial às plantas no ambiente seco da caatinga. Supôs que, devido à falta de água, a possibilidade de realizar fotossíntese ficasse restrita a um período curto. Quando o período da seca ameaça, os estômatos se fecham rapidamente, mas assim que o perigo se afasta, eles se abrem depressa e então nada deve dificultar o acesso de luz e de gás carbônico. Assim, os estômatos não devem estar em depressões, nem cobertos por pêlos, mas, ao contrário, devem estar bem expostos como, de fato, geralmente acontece.
O autor admitiu que se deveria pensar em valor adaptativo de caracteres combinados, em relação a conjuntos de processos, e não em valor adaptativo de um caráter isolado, em relação a um processo único. No presente caso, o xeromorfismo combinado com mecanismos fisiológicos de proteção contra a seca teria, na caatinga, um valor adaptativo menor que a proteção fisiológica, somente porque a proteção adicional contra a perda de água que o xeromorfismo daria à planta, não compensaria o prejuízo causado a sua fotossíntese.
No cerrado, o xeromorfismo não seria prejudicial, pois, devido à abundância d’água, os estômatos mantêm-se abertos, em geral, o dia todo.
Do estudo feito sobre a transpiração e o comportamento estomático, Ferri e Coutinho concluem:
“A análise do andamento diário da transpiração de diferentes espécies, na época, revela não existir uma diferença fundamental de comportamento nas três regiões consideradas. Revelam ainda não haver, em qualquer dessas localidades, necessidade de apreciável restrição do consumo hídrico. O estudo do comportamento estomático, mostrando estômatos abertos durante o dia, em quase todas as plantas nos três locais, confirma a conclusão acima.”
Pelo que se pode concluir, a água não é fator limitante do desenvolvimento da vegetação do cerrado nas três localidades consideradas. Posteriormente, Ferri e outros pesquisadores realizaram pesquisas similares em outras áreas de cerrado, em Goiana, Pernambuco.
Não se pode levar adiante qualquer estudo sobre os cerrados, se não se tomar em consideração o fogo, elemento intimamente associado a esta paisagem. Apesar de sua importância para o entendimento da ecologia desse ambiente, enquanto conjunto biogeográfico, a ação do fogo nos cerrados é ainda mal conhecida e, geralmente, marcada por questões mais ideológicas que científicas. Também não se pode conduzir seu estudo com base apenas nas comunidades vegetais. O estudo do fogo como agente será mais completo se também se observar a comunidade faunística e os hábitos que certos animais desenvolveram e que estão intimamente associados à ação, cuja assimilação, sem dúvida, necessita de arranjos evolutivos caracterizados por tempo relativamente longo. Diante dessas observações, constata-se, por exemplo, que a perdiz Rhynchotus rufescens só faz seu ninho em “macegas”, tufos de gramíneas queimados no ano anterior. Da visita a várias áreas de cerrado imediatamente após grande queimada, tem-se constatado que, apesar de as árvores e arbustos se mostrarem enegrecidos superficialmente, estes continuam com vida, ostentando ainda, entre a casca enegrecida e o tronco, intensa microfauna. Fenómeno semelhante acontece com o estrado gramíneo: poucos dias após a queimada, mostra sinais de rebrota que constitui elemento fundamental para concentração de certas espécies animais.
O fogo é um elemento extremamente comum no cerrado, de tal forma antigo, que a maioria das plantas parece estar adaptada a ele.
Ferri, comentando trabalho de Rachid Edwards sobre a ação do fogo em áreas de campo limpo e cerrado, informa que a autora estudou especialmente as gramíneas, grupo que constitui a massa da vegetação baixa dos campos, e no qual existe grande número de espécies tunicadas. Entre elas destacam-se Aristida pallens, Imperata brasilienses, Tristachya leiotachya e Paspalurn carimatum, Flugge. Informa ainda que a autora estudou duas espécies de Schizacaceae (Filicinae) — Anemia anthrisifolia e A. fulva. Rachid Edwards indica, neste mesmo trabalho, que as formações túnicas são encontradas em plantas da vegetação baixa dos campos, como Graminae, Cyperaceae, Iridaceae, Filicinae etc. Designa ainda que, segundo Bouillene, ocorrem também em Velloziaceae, pontos vegetativos e, em função, comparam-se aos catafilos que protegem as gemas dormentes. Tais elementos, além de protegerem contra a perda da água, são eficazes na proteção contra o fogo e contra o forte aquecimento por ele produzido.
A autora ainda trata dos sistemas subterrâneos (bulbos, rizomas, tubérculos e xilopódios), que também proporcionam resistência às condições adversas.
Arens afirma que o fogo é um fator que acentua o oligotrofismo, influindo dessa maneira sobre conservação ou propagação do cerrado, e Goodiand sugere que a ação do fogo sobre microorganismos do solo é muito importante no cerrado, porém pouco conhecida. A produtividade primária é aumentada, pois há uma aceleração da ciclagem dos nutrientes minerais.
Na mesma linha de raciocínio, Coutinho informa que a ação do fogo no cerrado aumenta o vigor da vegetação herbáceo – subarbustiva, enquanto a arbustivo — arbórea o tem diminuído. Isso significa, de acordo com o autor, um aumento progressivo das áreas de campo sobre as áreas de cerrado e áreas de cerradão.
Outro dado importante a destacar, quando se procura entender a ação do fogo ao longo da história, é que a ação do homem pré-histórico brasileiro não funcionou como elemento perturbador dessa paisagem porque, além da ocupação do interior do Brasil ser um fato relativamente recente, era insignificante em termos populacionais para produzir perturbações em amplas escalas; suas ações revestem-se de caráter puramente local.
Ao longo do tempo, a ação do fogo no cerrado deve ser buscada em causas naturais. O calor e as variações do albedo sempre alto nas áreas provocam intensos movimentos convectivos na atmosfera, em que a concentração da umidade e o forte gradiente térmico atmosférico montam, rapidamente, tempestades magnéticas caracterizadas pela intensidade dos trovões, relâmpagos e raios.
Atualmente, a forma descontrolada de utilização do fogo pelo homem vem provocando sérios desequilíbrios nesse Sistema Biogeográfico.
Publicação:
O Fogo e o Cerrado. Yana Marull Drews, Angela Barbara Garda, João Paulo Morita, Christi an Niel Berlinck. Brasília, 2015, 30p, il.
Cientistas descobriram que o fogo estava presente no Cerrado muito tempo antes da chegada da espécie humana, sendo, naquela época, causado por raios durante o período das chuvas. No longo período de convivência com o fogo, muitas plantas dessa região desenvolveram características que as protegem das altas temperaturas durante os incêndios e permitem que elas se recuperem após a passagem do fogo.
Atualmente, o fogo é provocado também pelo homem e utilizado durante a estação seca para preparar novas áreas para o cultivo, para a renovação de pasto ou para estimular a floração de algumas espécies. É comum que este fogo se espalhe pela vegetação nativa provocando incêndios que alteram os ambientais naturais, o ciclo de vida dos seres vivos, e os recursos naturais, como água, e o clima.
Compreender as relações entre o fogo e o Cerrado é importante para que se possa utilizá-lo de forma ecologicamente sustentável. O livro O Fogo e o Cerrado, lindamente ilustrado, aborda de forma simples e didática conceitos da história e ecologia do fogo no Cerrado, assim como princípios de uso controlado do fogo para atender às necessidades de produção de alimento e conservação da natureza. Assim, “o nosso céu continuará a chover, as águas continuarão a fluir, animais e plantas continuarão a existir, e todos nós poderemos viver melhor no Cerrado” como concluem os autores.
Heloisa Sinátora Miranda
“O presente trabalho foi desenvolvido no âmbito do Projeto Prevenção, Controle e Monitoramento de Queimadas Irregulares e Incêndios Florestais no Cerrado. O Projeto é uma realização do governo brasileiro, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, no contexto da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável Brasil-Alemanha, parte da Iniciativa Internacional de Proteção do Clima do Ministério Federal do Meio Ambiente, Proteção da Natureza, Construção e Segurança Nuclear da Alemanha. O projeto conta com apoio técnico da Deutsche Gesellschaft für Internati onale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH e apoio financeiro do Banco Alemão para o Desenvolvimento (KfW)”.
Almanaque do Fogo 2017: prevenção e combate ao incêndio florestal. Organização: Equipe de Educação Ambiental do Instituto Brasília Ambiental – IBRAM; Coleção: Almanaque do Fogo. – Ano 2, 2. ed. atual (nov/2017) – Brasília: IBRAM, 2017.
Especialistas consideram o Cerrado como o berço das águas, já que nele estão localizados três grandes aquíferos – Guarani, Bambuí e Urucuia –, responsáveis pela formação e alimentação de importantes rios do continente. As águas desses aquíferos durante milhões de anos foram armazenadas nas rochas porosas dos arenitos Urucuia, Botucatu, Bauru, Poti, Aquidauana etc., que formam as bacias geológicas do Parnaíba/Maranhão e do Paraná.
O cerrado contribui para oito das doze regiões hidrográficas do país, 70% da água que sai na foz do rio Tocantins-Araguaia vem do cerrado, 90% do que sai na foz do rio São Francisco também vem do cerrado e 50% do que sai na foz do rio Paraná, inclusive da água que chega a Itaipu, o Cerrado contribui com cerca de 50% da água que passa pela usina. Ele manda mais água para o Pantanal do que este joga de água no rio Paraguai. Além disso, tem uma contribuição relevante também na bacia do rio Parnaíba. Pelo fato de o restante da bacia ser de zona semiárida, o Cerrado tem uma importância bastante relevante para ela também. Então, a contribuição hídrica desse bioma é bastante expressiva. Mas 100% da água que abastece a represa de Três Marias (MG) são do cerrado, 90% da água que abastece a represa de Xingó e 70% da água que chega a Tucuruí são do cerrado.
A recarga dos aquíferos, que abastecem as bacias dos rios citados ocorre pelas bordas, nas áreas planas, onde a água pluvial infiltra e é absorvida cerca de 70% pelo sistema radicular da vegetação nativa, alimentando num primeiro momento o lençol freático e lentamente vai se armazenando nos lençóis mais subterrâneos, explica o pesquisador da Embrapa. Se não tem mato nativo, que foi transformado em carvão – a lenha do cerrado queima três dias dentro do forno – ou simplesmente queimou ao léu para dar lugar a pastagens africanas, a soja chinesa ou a cana europeia, o que acontecerá? Ora, dedução lógica, simples: não haverá água.
Pelo fato do Cerrado estar localizado no meio da região do Planalto Central, que é a parte alta, o bioma acaba funcionando como um “guarda-chuva” para o território, além de ser um grande reservatório. Por isso é conhecido como “pai das águas do Brasil”, ou o “berço das águas”. Pelas características de seu solo, ele tem uma capacidade boa de infiltração da água da chuva e armazenamento dessa água, que é liberada. No Cerrado, têm-se duas estações muito bem definidas: uma chuvosa e outra seca, com pouquíssima chuva. Então, graças a essa capacidade do solo de infiltrar e armazenar a água e de liberá-la de forma mais lenta, o bioma acaba funcionando como um grande reservatório e consegue abastecer nossos rios, inclusive no período seco. Por estar na região alta e central, o Cerrado tem um papel fundamental também na distribuição dessa água pelo território brasileiro e sul-americano, principalmente se pensarmos na Bacia do Rio da Prata. Todos os usos que são feitos nas bacias que recebem água do Cerrado acabam sendo dependentes. E as pessoas que moram nessas regiões acabam ficando dependentes também. Se pensarmos em bacias como a do São Francisco, como o próprio Pantanal, a bacia do rio Paraná e Tocantins, veremos que todas as pessoas que estão nelas acabam recebendo água do Cerrado.
E todas as atividades econômicas que são desenvolvidas nessas bacias acabam tendo vinculação com as águas que são produzidas dentro do território do bioma. Isso vale para quase todo o Brasil. A água do Cerrado não é importante só para a manutenção do bioma e para o desenvolvimento das atividades econômicas. É relevante também para todas essas regiões que estão abaixo, como a Caatinga, no caso da bacia do rio São Francisco, do Pantanal, da região da Mata Atlântica, e para as populações que vivem na bacia do rio Paraná, que acabam recebendo essas águas. Energia elétrica, navegação, indústria, a própria população, que toma a água desses rios que têm suas nascentes no Cerrado: o bioma acaba sendo fundamental para tudo isso.
O Cerrado tem divisa com quase todos os biomas; só não tem com o Pampa, que é mais ao sul, mas tem com a Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e Amazônia. E isso faz com que o Cerrado tenha uma biodiversidade muito grande e tenha uma variabilidade na chuva também, uma vez que perto da Amazônia chove muito mais que perto da Caatinga. A questão é que as chuvas no bioma são concentradas em seis, sete meses do ano. E no período seco têm-se umidades na faixa de 15%, o que fica sendo noticiado nos jornais o tempo todo, além das queimadas, etc. Então, tudo isso ajuda a formar uma ideia de que o Cerrado é uma região muito seca. Mas não é.