Aves Migratórias do Cerrado

O Cerrado em sua ampla extensão se apresenta bastante diverso. Sua heterogeneidade é expressa nas distintas fisionomias vegetacionais, variando desde áreas totalmente abertas, como campos limpos, a formações florestais densas, como o Cerradão.  O relevo, condições pedológicas e clima são alguns dos fatores que determinam as formações vegetais. Além disso, possui contato com diversos biomas, como a Amazônia, Mata Atlântica e Caatinga contemplando elementos destes em suas porções ecotonais.  

Consequentemente, tais condições possibilitam ao Cerrado abrigar uma alta riqueza de espécies da fauna. Somente de aves, são estimadas quase 900 espécies para a o bioma. Porém, apenas cerca de 40 espécies são endêmicas (DE LUCA et al., 2008), ou seja, ocorrem apenas em seu domínio, já que muitas apresentam distribuição ampla que abrange outros biomas. Entretanto, nem todas as espécies registradas estão presentes o ano todo, restringindo-se a um período de permanência. O fato do Cerrado apresentar vasta distribuição latitudinal permite que abrigue diversas aves migratórias.  

Mas para onde vão essas aves? Para obter essa resposta é melhor entender o porquê uma espécie migra. A migração é o movimento direcional de populações de determinada espécie que se desloca sazonalmente. Geralmente condições ambientais, tais como redução de intensidade de luz, temperatura, ou escassez de recursos, alimentares, reprodutivos, por exemplo, são responsáveis por esse processo. O Cerrado, por se inserir nos trópicos não apresenta uma variação climática tão acentuada, porém, muitas espécies que o visitam são oriundas de locais que de fato estão sujeitos a alterações mais drásticas, como as regiões temperadas. A maioria das espécies migratórias de longa distância vem do hemisfério norte, realizando um movimento latitudinal em relação ao sul. É o caso das aves limícolas, os maçaricos e batuíras, que nidificam em ambientes de tundra, na primavera/verão do hemisfério norte. Após a reprodução, com a redução de luminosidade e congelamento deslocam-se sentido os trópicos. No Cerrado, tais espécies podem ser encontradas principalmente em praias de rios e lamaçais temporários formados por precipitações. Nesses ambientes, alimentam-se de pequenos artrópodes que ficam imersos na lama. Outro visitante de áreas úmidas, em trajeto similar, a águia-pescadora (Pandion haliaetus) é um rapinante que também migra da América do Norte e visita os rios do Cerrado na primavera e verão.  

Nas porções mais ao sul, o Cerrado recebe migrantes oriundos do hemisfério sul e que migram no inverno para o norte. É o caso de algumas marrecas que podem aparecer como ocasionais em alagados. Também podem ser citados pássaros de descampados, como o príncipe (Pyrocephalus rubinus), cujo o macho chama a atenção por sua plumagem de coloração vermelha intensa, destacando-se nas áreas abertas. Há também um grupo de migratórios do sul que merece ênfase conhecido como caboclinhos. São pequenos pássaros granívoros e que devido à intensa captura para criação em cativeiro se tornam escassos em diversas localidades. Essa condição faz com que muitas espécies sejam consideradas ameaçadas de extinção. Tais aves se deslocam por campos para se alimentar de sementes de capins, geralmente em brejos e áreas ripárias. Cada espécie apresenta sítios de reprodução e rotas migratórias distintos, embora comumente sejam vistos bandos interespecíficos. Contudo, em geral são oriundos dos pampas e campos da Argentina, Paraguai e Uruguai. 

Há algumas espécies que se distribuem por diversos biomas brasileiros, mas que no outono e inverso se direcionam para a região amazônica. É o caso de pássaros de bordas de hábitos onívoros/insetívoros, como o bem-te-vi-rajado (Myiodynastes maculatus), a peitica (Empidonomus varius) e o suiriri (Tyrannus melancholicus). Tais aves são comuns em quase todas as formações do Cerrado, sendo facilmente observadas capturando insetos em áreas semiabertas. De migração similar, a juruviara (Vireo chivi), é um pequeno pássaro onívoro, que habita formações florestais secundárias, amplamente distribuído no bioma. Sua voz é característica e entoada quase o dia todo. Ainda nessa categoria de migração, há alguns rapinantes, como o gavião sovi (Ictinia plumbea) e o gavião-tesoura (Elanoides forficatus). Em geral, ao contrário dos migrantes de maiores latitudes, tais espécies se reproduzem no Cerrado e migram posteriormente.  

O beija-flor-preto (Florisuga fusca) é uma espécie característica da Mata Atlântica, mas que migra para o interior do país, visitando as flores da porção leste do Cerrado. 

Por último, vale mencionar as andorinhas, famosas em histórias populares que já relatam suas migrações. Diversas espécies ocorrem no Cerrado, porém cada uma apresenta uma rota específica. Algumas são migrantes de longas distâncias, como a andorinha-de-bando (Hirundo rustica) e andorinha-do-barranco (Riparia riparia), oriundas da América do Norte. Outras, fazem migrações regionais e até parciais (apenas parte da população migra), como a andorinha-serradora (Stelgidopteryx ruficollis). 

Embora a migração seja um processo bem marcado sazonalmente, com rotas estabelecidas, muitos indivíduos podem aparecer como vagantes, ou seja, podem surgir “perdidos” fora de sua rota/área de distribuição. Trata-se de um evento que desperta a atenção de observadores de aves, já que encontrar uma espécie fora de sua área de ocorrência conhecida é nada menos do que achar uma raridade.  

Por fim, o Cerrado se revela de grande importância para aves migratórias devido à sua localização. Consiste na área de passagem de diversas rotas, principalmente para espécies que se direcionam para a Amazônia. Por isso, sua conservação se revela fundamental para que diversas espécies migratórias continuem a utilizar suas formações como local de descanso, forrageio e reprodução. Assim, ações de conservação devem focar a maior especificidade possível de condições ambientais, abrigando as distintas formações vegetais, para garantir a manutenção de populações de aves migratórias.

 

Por: Fernando Igor de Godoybiólogo (ornitólogo) e ilustrador