Xerente
Os tamanduás Xerente:
Numa aldeia Xerente vivia um velho krieri’ekmu [uma das subdivisões do povo, literalmente “bráctea da palmeira pati”] e sua esposa muito idosa. Na época de amadurecimento dos frutos do buriti, o casal se mudou para um riacho, ergueu uma cabana e juntou cestos com frutos de buriti. A filha do casal de velhos visitou-os, dias depois, para ver como estavam. Ela os encontrou na cabana e notou, com espanto, muitas fibras de buriti penduradas ali, do melhor tipo, obtidas pela remoção de camadas superiores de folhas jovens. Ficou surpresa também pelos muitos pedaços de ninhos de cupim por ali jogados. O velho casal deu todos os frutos que haviam colhido para a filha, explicando que já não conseguiam comer nenhuma fruta dura. Numa segunda visita aos pais, alguns dias depois, a moça não os encontrou, achando, em seu lugar, não muito longe da cabana, dois tamanduás deitados, cobertos por suas caudas, sobre disfarces “Padi”. Por toda parte havia pedaços de ninhos de cupim e todos os montes de cupim da vizinhança estavam quebrados. A filha procurou por sinais dos pais por toda a parte, mas achou apenas os dos tamanduás. Ao voltar para sua aldeia, a mulher contou ao marido que os pais tinham desaparecido sem deixar vestígios, e que ela encontrou dois animais estranhos perto da cabana. O homem foi imediatamente até a cabana à beira do riacho, acompanhado da esposa, para ver o que estava acontecendo. Os tamanduás, farejando sua aproximação, trotaram em direção a uma ilha arborizada, mas o homem alcançou-os e espancou-os até a morte. Enquanto a mulher assava a carne, ele procurou em toda a vizinhança pelo velho casal, mas não encontrou nada além dos rastros de tamanduás. Os dois voltaram para casa com a carne e os dois trajes e máscaras. À noite, o sangue dos dois tamanduás assassinados se transformou em um grande número de tamanduás, que se aproximou da aldeia. Na manhã seguinte um velho aldeão conhecedor de tudo foi à cabana perto do riacho para ver se poderia explicar o desaparecimento dos velhos. Quando voltou, chamou o marido da filha e disse que os tamanduás que ele matara eram seus sogros, que haviam se transformado nos animais por meio dos disfarces. Em memória do evento, os trajes deveriam ser preservados e, ocasionalmente, renovados para um festival Padi [“festa do tamanduá”].
Fonte:
SANCHES, E. O TAMANDUÁ XERENTE: VELHICE E VIOLÊNCIA NO “BURITI”, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA. Rev. Let., São Paulo, v.60, n.1, jan./jun. 2020. p.47-48.