Kayapó

A gesta dos irmãos míticos  

 

Em diversas etnografias sobre os índios kayapó do Brasil central pode-se encontrar traduzido um rico corpus mítico (Gordon, 2006; Lea, 1986; Luckesh, 1976; Vidal, 1977, Wilbert, 1978). Nele figuram diversos temas e personagens que cercam o universo real e imaginário desse povo indígena, e cuja plêiade de problemas abarca desde questões e elementos naturais, como astronômicos, ecológicos, geográficos, até questões culturais, econômicas, sociológicas, cosmológicas etc. Mas, embora de fato haja nos mitos vários códigos, um elemento constante em boa parte da cosmologia kayapó é a relação com o mundo exterior não Kayapó. Seja em relação ao mundo da natureza, ao mundo dos outros povos, ou ao mundo dos espíritos, várias narrativas apontam para a constituição de uma humanidade plena com base numa relação, muitas vezes predatória, com essas diversas secções do mundo exterior. Dentre essas narrativas, há registrada a gesta dos dois irmãos, Kukryt Kakô e Kukryt-Uire, que, em certos aspectos, ajudaram a fundar certos atributos caracterizadores da identidade Kayapó.  

 

Luta contra o Grande Gavião: 

Kukryt-Kakô e Kukryt-Uire eram dois meninos de aproximadamente dez anos. O avô estava fazendo flechas; e a avó (kwatyj) chamou os meninos para irem tirar palmito. Eles foram. A velha estava cortando palmito debaixo do Grande Gavião. O Gavião já vinha trazendo um homem que tinha pegado enquanto estava caçando. Quando pôs o homem no ninho, ele avistou a velha cortando palmito. Aí, o Gavião desceu, pegou a velha, subiu e botou no ninho. Os meninos ficaram chorando: “E agora?”. Os meninos quebram palha, botaram nas costas e foram embora. Chegaram chorando onde o avô estava fazendo as flechas. Ele perguntou: “Cadê a avó?”. “O Gavião pegou”. O avô disse: “Eu vou matar o Gavião”. Mas não matou, foi só olhar. O Gavião estava pousado num jatobá; o avô olhou e voltou chorando. O Gavião estava comendo a velha. Aí ele ficou pensando, à noite, o que iria fazer com o Gavião. No outro dia ele foi procurar um grotão grande. Quando encontrou, levou os meninos e os pôs dentro d’água. Alimentou-os com muita batata, beiju, banana, inhame. […]. Com cinqüenta dias os pés dos meninos já estavam do outro lado seco (na outra margem), bem para cima. Peixes andavam por cima deles, cobra, poraquê, jacaré. Todo bicho andava por cima deles, e eles ficavam quietos, não se mexiam. O peixe pensava que era pau. Quando o avô viu que os pés estavam do outro lado, do seco, ele foi buscar todo mundo, foi avisar. Ele fez borduna (kô), a lança comprida (nojx), buzina pequena de taboca (õ-i). Aí todo mundo foi, de manhã cedo, levar urucum, coco, talha de coco para tirar a gosma de peixe dos meninos. […]. 


Depois pintaram-nos de urucum. De noite, o avô fez um abrigo de palha (ka’ê) para matar o Gavião. Às cinco horas da manhã os dois irmãos entraram e esperaram o dia abrir. Ninguém foi com eles. Quando era as dez KukrytUire saiu e chamou de cima, isto várias vezes. Quando o Gavião cansou, botou a língua de fora e ficou com as asas abertas. Os dois irmãos ficaram com medo de matar. O gavião subiu de novo, depois desceu e, desta vez, eles mataram com a lança, mataram com a borduna, tiraram a penugem e puseram na cabeça como enfeite e ficaram cantando. Chegaram lá para contar ao velho. Todo mundo foi então cortar o Gavião miúdo, miudinho. No mato, tiraram uma pena e saiu um gavião, uma pena menor, saiu um urubu, outra pena, uma arara. Fizeram todas as aves. 

 

Fonte:

MANO, M. Sobre as penas do gavião mítico: história e cultura entre os Kayapó. Tellus, ano 12, n. 22, jan./jun. 2012. p. 139. 

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