O Cerrado em Guimarães Rosa

“O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga” João Guimarães Rosa.

João Guimarães Rosa (Cordisburgo, 27 de junho de 1908 — Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1967)

A obra Grande Sertão: Veredas escrita por Guimarães Rosa é um clássico escrito na década de 1950 que aborda a relação das pessoas com a natureza, imerso em seu contexto sócio-cultural e ambiental, descrevendo com fidelidade a vida sertaneja brasileira e sua íntima relação com o bioma Cerrado: “o sertão é o mundo” mas um mundo dentro do Cerrado.

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os

campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas demais do Urucuia.

Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah que tem maior!

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos… o Urucuia vem dos montões

oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens

de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata a mata, madeiras de grossura, até a

ainda dessas virgens ainda há lá. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho”.

Classificado como romance, apresenta uma narrativa fortemente descritiva, feita pelo então ex-jagunço, Riobaldo Tatarana, protagonista da obra, a um interlocutor oculto. Durante a narrativa, o ex-jagunço, agora idoso e proprietário de terra, relata de sua trajetória de vida e tudo o que a envolveu desde suas divagações quanto à existência da dicotomia entre o Bem e Mal, perpassando pela fiel e profunda caracterização do meio físico, que se passa no Cerrado brasileiro, e as batalhas travadas, tudo isso enquanto tenta esconder, entender e aceitar sua paixão impossível por um de seus companheiros de bando, Diadorim.

É uma epopéia da natureza, onde o sertão é personagem, terra, ambiente, ecologia da desmesurada aventura-desventura de Riobaldo e Diadorim. São sempre poucas as páginas de Grande Sertão: Veredas em que não se encontra uma descrição detalhada, ora geológica, ora botânica, ora zoológica dos seus sertões.

Riobaldo repassa com tristeza, “uma tristeza que até alegra”, o prospecto de seu interlocutor sair sertão afora, trilhando suas trilhas, correndo seus chapadões, atravessando suas veredas. Suas dele, que dessa terra se apropriou nas travessias todas de seu relato. “Não fosse meu despoder… Eu guiava o senhor até tudo. Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha
de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na
Serra do Tatu – já ouviu o senhor gargaragem de onça? A garoa rebrilhante dos-Confins,
madrugada quando o céu embranquece – neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou
a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim… A da-Raizama, onde até os pássaros
calculam o giro da lua – se diz – e canguçu monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar
dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em
abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelhinhas…”

“As garças é que praziam de gritar, o garcejo delas, e o socó-boi range cincerros, e o socó
latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas avante tudo era um sapal”.

“Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas marchas, duramente no varo das
chapadas, calcando o sapê brabão ou areias de cor em cimento formadas, e cruzando
somente com gado transeunte ou com algum boi sozinho caminhador. E como cada vereda,
quando beirávamos, por seu resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem notícia –
todo buritizal e florestal: ramagem e amar em água. E que, com nosso cansaço, em seguir, se
eu nem saber, o roteiro de Deus nas serras dos Gerais”.

“Ao pé das chapadas, no entremeio do se encher de rios tantos, ou aí subindo e descendo
solaus, recebendo o empapo da chuva, a gente se fervia… O chapadão é sozinho – a largueza.
O sol. O deu de não se querer ver. O verde carteado do gramal. As duras areias. As
arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de araras – araral –
conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia? Chove – e não encharca
poça, não rola enxurrada, não produz lama: a chuva inteira se soverte em minuto terra a fundo,
feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse rareamento de águas. O fevereiro
feito. Chapadão, chapadão, chapadão”.

“Para ouvir gavião guinchar ou as tantas seriemas que chungavam, e avistar as grandes emas
e os veados correndo, entrando e saindo até dos velhos currais de ajuntar gado, em rancharias
sem morador? Isso quando o ermo melhorava de ser só ermo. A chapada é para aqueles
casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém
assopram sua bruta força. Aqui e aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim
a um tiro de pistola – isto resumo mal. Ou o zabelê choco, chamando seus pintos, pra
esgravatar terra e com eles os bichinhos comíveis catar. A fim, o birro e o garrixo sigritando.
Ah, e o sabiá-preto canta bem. Veredas”.

“Mesmo não era só capim áspero ou planta peluda como um gambá morto, o cabeça-de-frade
pintarroxa, um mandacaru que assustava. Ou o xiquexique espinharol, cobrejando com suas
lagartonas, aquilo que, em chuvas, de flor dói em branco. Ou cacto preto, cacto azul, bicho
luís-cacheiro. Ah não, cavalos iam pisando no quipá, que até rebaixado, esgarço no chão, e
começavam as folhagens – que eram urtigão e assa-peixe, e o neves, mas depois
tinta-dos-gentios de flor belazul, que é o anil-trepador, e até essas sertaneja-assim e a
maria-zipe, amarelas, pespingue de orvalhosas, e a sinhazinha, muito melindrosa flor, que
também guarda muito orvalho, orvalho pesa tanto: parece que as folhas vão murchar. E
erva-curraleira… E a quixabeira que dava quixabas”.

“Sertão velho de idade. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem:
como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui e vai beirar
outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo o sol e os pássaros: urubu,
gavião – que sempre voam, às imensidões, por sobre… Travessia perigosa, mas é a da vida.
Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais
longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele…”

“O senhor vê: existe cachoeira: e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo
por ele, retombando; o senhor consome essa água, o desfaz o barranco, sobra cachoeira
alguma? Viver é negócio muito perigoso.

De acordo com Neves “é possível inferir que a região do Grande Sertão: Veredas está altamente alterada do ponto de vista ambiental. Após décadas de incentivos por parte do governo federal, que buscava impulsionar a ocupação do interior do Brasil durante toda a década de 1970, o sertão descrito por Guimarães Rosa vem se perdendo desde então, ano após ano. O Agronegócio matou o Sertão (2015: 54). A conversão do Cerrado em paisagens homogêneas e monótonas, com presença, quase exclusiva, de áreas de produção ligadas às atividades da agricultura e pecuária, principalmente, se deve as extensas áreas ligadas a atividades do agronegócio, impulsionando a transformação da paisagem descrita na obra rosiana.

O verdadeiro amor de Riobaldo foi Diadorim. Ao final do livro, quando Riobaldo busca a verdadeira identidade de Diadorim, ele encontra sua certidão de nascimento, que revela seu verdadeiro nome, bem como sua cidade de origem, onde foi batizada. Coincidência ou não, o dia de nascimento de Diadorim é o Dia do Cerrado:
“Só um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira (…). Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da era de 1800 e tantos…(…) Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins” (p.458).

Para ler o livro, clique no link abaixo:

USP convida a enveredar pelo “Grande Sertão” de Guimarães Rosa – Jornal da USP