Moacir Farias
Desde que nasceu, Moacir Soares de Farias vive envolto por algumas questões místicas, que ainda não foram completamente explicadas. Quando morava com a família nas proximidades dos garimpos da Chapada dos Veadeiros, costumava se esconder das pessoas. Saía de casa apenas com o rosto e o corpo cobertos com um tecido. Moacir sempre evitou o convívio social, sendo que, quando recebia visitas, saía de casa e se escondia no mato.
Para Moacir, o desenho passou a ser uma ferramenta de comunicação com o mundo exterior. Em sua arte, o chão do Cerrado está sempre presente, com seus troncos retorcidos e animais silvestres. Sua linguagem imagética transpõe seu universo interior, traduzido em novos seres a partir do contato que tem com a parcela de mundo externo à qual tem acesso.
O artista nunca deixou a região onde nasceu. Toda sua vida e sua produção estão arquivadas e expostas em sua casa, na Vila de São Jorge. A natureza da arte de Moacir, a maneira como pinta e a forma como seus desenhos interagem com o universo exterior já fizeram do artesão um objeto de estudos de especialistas e acadêmicos. Assim, Moacir chegou a ser tema da monografia de uma aluna do curso de Artes Plásticas da Universidade de Brasília (UnB).
Suas pinturas confrontam elementos de naturezas distintas, criando figuras carregadas de simbolismos e personagens do imaginário popular. Com problemas de audição, fala e formação óssea, ele passa os dias desenhando e pintando. Hoje, em seus trabalhos, utiliza tinta a óleo, giz de cera, lápis de cor e tinta para tecidos. Apesar de não ter estudado, o universo interior do artista é incontestavelmente rico.
A casa de Moacir é uma atração a mais na Vila de São Jorge. Coberta de desenhos por dentro e por fora, é um dos primeiros atrativos a saltar aos olhos de quem chega ao povoado. Localizada no início da principal rua do vilarejo, o lugar onde Moacir faz sua arte acontecer não passa despercebido. Dentro da sala onde pinta, ele guarda suas peças, tintas, giz de cera e uma câmera de vídeo digital, que usa para registrar as obras que finaliza.
Em 2006, o cineasta Walter Carvalho lançou o documentário Moacir – Arte Bruta, no qual a família e alguns outros moradores de São Jorge dão uma série de depoimentos que tentam explicar de onde vem a arte de Moacir. Carvalho conheceu o artista plástico por acaso, quando visitou a Vila, em meados da década de 1990. Interessou-se pelo trabalho e pela história de Moacir e resolveu documentá-la. O título, no entanto, causou polêmica.
O termo “arte bruta” remete a Art Brut. Criado pelo pintor francês Jean Dubuffet nos anos 1950, refere-se ao artista que se manifesta refletindo o seu universo interior. O conceito é uma tentativa da psicanálise de compreender a produção estética de pessoas com problemas psiquiátricos. É a manifestação do inconsciente, aquilo que o indivíduo pode produzir sem a interferência do mundo exterior. É uma consideração ambígua, pois, a certo ponto de vista, parece transmitir preconceito com a arte de pessoas que, a rigor, seriam incapazes de produzir.
A produção de Moacir, no entanto, apesar de apresentar certos padrões estéticos, é entremeada por seres complexos, como cobras e rãs que mudam sua forma e se camuflam, representações de Deus e do diabo, mulheres, genitálias que nadam como peixes e facas que enfeitam os mantos dos santos.
A discussão a respeito da arte de Moacir vem daí: como suas pinturas podem ser chamadas de brutas” se envolvem uma gama de conceitos, temas e conhecimentos? Percebe-se também o embate entre religião e ciência: enquanto uns atribuem o talento do pintor a uma obra divina, outros dão uma explicação científica.
O filme começa com uma citação do psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica, também conhecida como psicologia junguiana, Carl Gustav Jung: “Pintar aquilo que vemos diante de nós é uma arte diferente do que pintar o que vemos dentro de nós”.
O documentário, dirigido por Walter Carvalho (co-diretor de filmes como Cazuza, O Tempo Não Para, com Sandra Werneck, e Janela da Alma, com João Jardim), tenta dialogar com esta visão diferenciada do artista Moacir. Durante sete dias de filmagem, foram feitos registros do pintor em casa, desenhando, além de depoimentos de familiares e vizinhos que o conhecem desde pequeno e ajudam a traçar um painel de sua vida e obra.
Em um momento do filme, Seu Domingos, pai de Moacir, resume o que pensa sobre a arte do filho. “A compreensão dele, eu não tenho. E a compreensão que eu tenho, ele não tem”, diz. O regionalismo fica claro em cada depoimento e as interferências internas ficam por conta da visita do artista plástico goiano Siron Franco, que divide um desenho com Moacir que teria o propósito de colocar em diálogo o primitivismo inconsciente e o moderno abstrato; e o aparelho de televisão, que mostra um leilão de arte com quadros primários de paisagens sendo vendidos a altos valores.
Carvalho dedicou o filme ao cineasta brasileiro Leon Hirszman. Expoente do Cinema Novo, filmou Imagens do Inconsciente, em 1987, com três artistas do Museu das Imagens do Inconsciente, na época dirigido pela doutora Nise da Silveira. A trilha sonora de Moacir – Arte Bruta foi feita por Léo Gandelman e segue a personalidade diferenciada do artista plástico com uma canção tema de Antônio Nóbrega.
A direção de fotografia, feita por Lula Carvalho, filho de Walter, visa ampliar a visão de Moacir, como, por exemplo, em uma cena onde ele desenha em um vidro, que é filmado por baixo, em contra-plongé. Em sua essência, o filme tenta mostrar Moacir como um personagem de um universo mítico, habitante de um Brasil praticamente desconhecido.
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