Sítio Arqueológico Bisnau
Não muito longe de Brasília, a cerca de 130 quilômetros, localiza-se uma joia arqueológica conhecida como a Pedra do Bisnau (fig. 1). Trata-se de um grande lajedo de arenito coberto por centenas de gravuras em baixo-relevo constituídas essencialmente por representações geométricas e abstratas. Utilizamos aqui o adjetivo abstrato por uma questão de praticidade de qualificação, uma vez que as figuras constitutivas deste corpus de arte rupestre parecem simbolizar ideias complexas e incógnitas para as mentes da sociedade contemporânea. Para este tipo de figuras rupestres não compreensíveis, André Leroi-Gourhan (1987: 298) atribuiu a denominação de categoria geométrica pura. O sítio arqueológico Pedra do Bisnau está localizado no estado de Goiás, que por sua vez se situa na região centro-oeste do Brasil, sobre a área do planalto central. Goiás é o único estado brasileiro que contribui, com suas águas, para três importantes bacias hidrográficas do Brasil: Amazônica e Paraná com grandes
afluentes e São Francisco, com pequenos cursos d’água (Melo, 1971: 660). Nesta região, agraciada pela abundância de água e, a qual o poeta goiano Leo Lince chama de o Berço das Águas do Brasil, incrusta-se a Pedra do Bisnau, localizada a cerca de cinquenta quilômetros do município de Formosa25. O acesso é feito pela BR- 20, pouco depois do povoado do Bezerra, passando pelas “pamonharias do Bisnau” que conduz a um mata-burro rústico abrindo a estrada de terra para o sítio arqueológico e para as cachoeiras. O elemento água faz parte da própria gênese do município, pois tudo começa nas proximidades da Lagoa Feia com seus oito quilômetros de extensão e já conhecida desde o início do século XVII. Ali, boiadeiros e garimpeiros que viajavam pelos sertões rumo às minas dos Guaiazes escolheram o local como parada de repouso.
… Inscrita no município de Formosa e mais precisamente na propriedade privada que outrora abrigou um caminho de passagem no centro-oeste do Brasil, a Pedra do Bisnau parece ter testemunhado também as idas e vindas daqueles viajantes do século XIX. Um ponto interessante de se observar é o fato de que a primeira data de registro das gravuras do Bisnau aparece na ficha do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) datada de 30 de dezembro de 1899! Infelizmente não há mais detalhes sobre esta data ou autoria da informação. Ainda neste registro, realizado no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA), a Pedra do Bisnau foi registrada sob a sigla oficial GO-PA- 001 em 1975. Neste documento, o sítio recebe o nome de Petroglifos do Bisnau, tendo uma área declarada de 3.500m2 dentro de propriedade privada. Mesmo tendo sido declarado como sítio de alta relevância, lê-se no documento que a única atividade desenvolvida no local foi o seu registro. Exclui se, portanto, a menção de outras atividades metodológicas como coleta de superfície, sondagem ou corte estratigráfico, escavação de grande superfície ou levantamento de grafismo rupestre Atualmente, o sítio arqueológico encontra-se dentro da propriedade particular Fazenda do Bisnau32 e, mesmo desconhecida para a grande maioria dos habitantes da região, as gravuras do Bisnau têm atraído a atenção de pesquisadores nacionais e estrangeiros, sobretudo após os primeiros estudos científicos iniciados por Iluska Simonsen e Alfredo Mendonça de Souza a partir de 1975.
… Conclusão
Passados quase quatro décadas desde o início dos primeiros estudos científicos no planalto central, a Pedra do Bisnau continua inexplorada no que diz respeito a escavações científicas e permanece, portanto, uma incógnita no plano arqueológico Numerosas são as questões que se colocam. Quem foram os povos que elaboraram as gravuras? Quando? Que propósito e que tipo de mensagem guardam as gravuras do Bisnau? Para Paulo Bertrand (2004), as gravuras estão relacionadas aos astros e às constelações de um passado imemorial e menciona mesmo a ocorrência de uma gravura que poderia representar a aparição de um antigo cometa. Em termos etimológicos, é difícil precisar a origem da palavra Bisnau. No dicionário de Aurélio Buarque de Holanda (1969)52, o léxico bisnau significa “velhaco, homem finório e astucioso”. Na edição mais recente do mesmo dicionário (2009), bisnau significa pássaro. Já em latim, o termo bis pode significar duas vezes como também pode advir do termo bîsi, significando cinza, escurecido, coberto por nuvens53. No dicionário de língua grega (2008) naus (ναῦς) significa navio, embarcação, enquanto naos (ναός) significa templo. As combinações destes significados oferecem conjecturas notáveis como “duas vezes embarcado” ou “templo coberto por nuvens”. Vanderlei (2000: 16) nota que a rocha onde foram realizadas as gravações da Pedra do Bisnau constitui um elemento de surpresa na paisagem do cerrado, tanto pela sua vasta dimensão quanto pelos inúmeros traços ligeiramente mais claros que a cobrem, “(…) a rocha se insere perfeitamente no meio natural que a cerca e, sem dúvida, esta atmosfera foi percebida pelos homens pré-históricos. As gravuras representadas fazem parte desta ambientação simbólica”54. M. Philibert (2003: 43) explica que, de maneira geral, covinhas naturais, ampliadas ou aprofundadas na rocha podem estar em relação com cultos à água, elemento este, associado à fecundação Ela explica que, após o período glaciário, as covinhas são frequentemente encontradas sobre rochas ao ar livre sendo suscetíveis a recolher uma água lustral56 e altamente energética. O fato é que, tanto as gravuras da Pedra do Ingá quanto as gravuras da Pedra do Bisnau e tantos outros dispersos pelo Brasil não oferecem um significado lógico para a mente contemporânea. Martin (2013: 296-298) diz ser possível que a finalidade seja esta mesma, pois a magia não é permitida para todos e seu poder reside no mistério, as gravuras “(…) sem dúvida, têm um significado, mas somente os iniciados o conhecem”. Um elemento de caráter etnográfico nos chama a atenção: a ação dos visitantes modernos em preencher os sulcos gravados na rocha com a intenção de realçar as figuras. Durante as visitas ao sítio arqueológico, testemunhamos dezenas de gravuras com seus sulcos preenchidos ora por giz ora por areia ou terra. Evidentemente, condenamos tal ato por entendermos que esta ação realizada ao longo dos anos acaba por acelerar o processo de desgaste das gravuras. Porém, uma observação destituída deste julgamento nos permite refletir sobre certo aspecto de comportamento simbólico em que a vontade de destacar as gravuras parece ser inerente à mente humana. É como se homens e mulheres modernas estivessem repetindo um gesto imemorial na tentativa de dar vida à mensagem adormecida na rocha. Dito de outra forma, o gesto humano teria como finalidade a busca pelo anima daquilo que as gravuras poderiam expressar e, neste sentido, as figuras atuariam como hieróglifos – em seu sentido etimológico hieros (sagrado) glyphein (escrita). Neste passado remoto em que viveram os povos que gravaram a rocha do Bisnau, o portador deste gesto desempenharia um papel de mensageiro entre dois mundos. A ele caberia cumprir o papel de recordar aos homens e às mulheres o verbo da mensagem cinzelada na rocha. Neste sentido, a superfície quase plana da Pedra do Bisnau parece corresponder a uma grande página de livro escrita para ser lida a partir de uma posição zenital ou celestial. Imaginemos, caro leitor, a Pedra do Bisnau numa noite de lua cheia em que os sulcos das gravuras estariam preenchidos por água ou mesmo por uma areia composta por partículas cristalinas reluzentes. Não é difícil de formar a imagem mental de um espetáculo que salta aos olhos ao perceber as figuras “acesas” no manto escuro da noite. No exercício de imaginação proposto, não seria impossível visualizar um conjunto de imagens como este sugerido pela figura 1157. Uma apreciação mais sensível da imagem nos instiga a tal ponto de sugerirmos a ideia de uma “escritura viva” para as gravuras do Bisnau que, numa perspectiva mitológica, poderia atuar como a expressão material simbólica de uma cosmogonia daqueles homens e mulheres que nos precederam no tempo. Mircea Eliade (1979: 8-9) chama a atenção para a importância da imaginação como instrumento de conhecimento e afirma que a experiência imaginária é constitutiva do ser humano, tanto quanto as atividades práticas e do dia a dia. Para a mente moderna, imaginação não é irreal, mas “revela estruturas do real inacessíveis quer à experiência dos sentidos quer ao pensamento racional”.
O projeto “Iconografia das Tradições: um estudo acerca da arte rupestre formosense” com vistas à criação de um banco de imagens tem sua origem em 2017, como um projeto de Iniciação Científica para o Ensino Médio Integrado ao Técnico (PIBIC-EM), do Instituto Federal de Educação de Goiás, Campus Formosa.
Trata-se do estudo das primeiras ocupações humanas de que se tem registro no Planalto Central, de aproximadamente 12.000 anos a.C., num período transitório do Pleistoceno para o Holoceno, onde, dadas as características específicas da geomorfologia e do Sistema dos Cerrados, favoreceu a diversidade adaptativa e, consequentemente, a diversidade cultural daqueles primeiros povos.
E então, dos vestígios arqueológicos deixados por estes primeiros colonizadores, nos valemos das representações rupestres, mais exatamente, da Tradição Geométrica, presento no Sítio Arqueológico do Lajedo do Bisnau, em Formosa-GO, com o intuito de fomentar a necessidade de aprofundamento de pesquisa arqueológica na região, para que as singularidades destas representações possam ser preservadas e divulgadas, o que, propusemos, fosse realizado através da criação de um banco de imagens virutal.
O desdobramento desta primeira pesquisa, iniciada em agosto de 2017 e concluída em julho de 2018, originou uma segunda pesquisa, “Iconografia das Tradições: um estudo acerca da arte rupestre formosense” com vistas à criação de um banco de imagens – parte II, iniciada em agosto de 2018 e concluída em julho de 2019. Esta segunda parte limitou-se ao aprofundamento da medição das imagens, para melhor identificação e localização, originando pranchas mais detalhadas sobre os petroglifos.
Diante da diversidade de sítios arqueológicos encontrados na região de Formosa, cabe destacar que o projeto Iconografia das Tradições, oferece a possibilidade de ampliar as pesquisas até aqui realizadas, e incorporar ainda mais dados no Banco de Imagens Arqueologia Formosa, podendo, futuramente, haver articulações que possitiblitem o Georreferenciamento, a criação de um Sistema de Informações Geográficas (SIG), mapeamentos mais detalhados, por scanner e laser, criações de modelos 3D, ortofotos, fotogrametria, criação de museus virtuais e tantas outras tecnologias que, se aplicadas à preservação do patrimônio, evitarão o desaparecimentos destes registros dos povos pretéritos que por aqui passaram há cerca de 14.000 anos.
Site: https://arqueologiaformosa.blogspot.com/
Banco de imagens: https://arqueologiaformosa.blogspot.com/
Contatos:
Prof. Edson Rodrigo Borges
edson.borges@ifg.edu.br
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO DE GOIÁS – CÂMPUS FORMOSA
Rua 64, esq. c/ Rua 11, s/n, Expansão Parque Lago. CEP: 73813-816. Formosa – GO.
Telefone: (61) 3642 9450
RIBEIRO, Kenia Aguiar de. Contribuição ao estudo da arte rupestre na região do planalto central do Brasil: a Pedra do Bisnau. A enigmática rocha gravada do Planalto Central. In: MENDES, Valmir Manoel Mendes. ENSAIOS DA PAISAGEM II – MÉTODOS E ANÁLISES. Vol. II, 2018.
CUNHA, João Paulo Lopes da. Mapeamento cadastral de sítios arqueológicos com uso de dados remotamente adquiridos: um exemplo do mapeamento de petróglifos do Sítio Arqueológico do Bisnau. 2018. 162 f., il. Dissertação (Mestrado em Geociências Aplicadas)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/342992)
ALMEIDA, Hugo Emanuel de. Imaginário e experiência turística no sítio arqueológico Bisnau Formosa – Goiás: praticando espaços e construindo lugares. 2015. x,125 f., il. Dissertação (Mestrado Profissional em Turismo)—Universidade de Brasília, 2015. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/19146
A arte rupestre da Pedra do Bisnau, Goiás (Brasil) – Entrevista com Noel dos Santos;
Nesta entrevista, o guia de turismo Noel José do Santos fala sobre o traDbalho de prospecção arqueológica e sobre o sítio arqueológico Pedra do Bisnau, localizado na região da cidade de Formosa, em Goiás. Arqueologia do Planalto Central – Pedra do Bisnau Idealização: Kenia de Aguiar Ribeiro Produção: Scriptorium films Edição: Mont’Alvernne Rivière Agradecimentos: Gilberto Thomé, Luana Le Roy Esta entrevista foi concedida em agosto de 2016, sendo o vídeo editado em setembro de 2018.