Apanhadoras/es de flores sempre-vivas

Foto: André Dib/Repórter Brasil

“A Serra do Espinhaço constitui a única cordilheira brasileira, sendo uma importante referência geográfica, histórica e cultural no estado de Minas Gerais. Trata-se de um grande divisor geográfico de importantes bacias hidrográficas nacionais, de destacada biodiversidade e ocupação antiga de populações indígenas (mais de 10.000 anos), com posterior chegada de imigrantes portugueses e africanos no período colonial (a partir do final do século 17)” (Eidt; Udry, 2019, p. 93).​

“O Sistema Agrícola Tradicional (SAT) da Serra do Espinhaço Meridional (…) está em ambiente de Cerrado, em transição para a Mata Atlântica em sua porção oriental, e conta com grande diversidade de características fitofisionômicas e edafoclimáticas: de campos rupestres (1.400 m) até escarpas declivosas e vales profundos que atingem as cotas baixas (600 m), onde estão as vazantes dos rios. Combina, portanto, diferentes altitudes e elevada biodiversidade, associada às distintas características, com ampla gama de conhecimentos tradicionais referentes ao uso desses ambientes, gerando distintos agroambientes. Como resultado, têm-se paisagens manejadas, abundância hídrica, hotspot de biodiversidade nativa, vasta agrobiodiversidade e considerável densidade cultural” (Eidt; Udry, 2019, p. 94).

“Os usos desses agroambientes foram desenvolvidos e reelaborados ao longo dos séculos de história de uso e interação com esses agroambientes – são paisagens manejadas em constante coevolução com as comunidades delas dependentes. Além disso, o regime agrário conta com terras de uso comum, onde há uso de técnicas adaptativas às condições edafoclimáticas, considerável segurança alimentar, geração de renda e resiliência socioecológica” (Ibid, p. 95).

 

 

Fonte:  EIDT, J. S.; UDRY, C. (editoras técnicas). Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil. Brasília: Embrapa, v. 3, 2019.

“(…) as famílias conjugam agricultura-criação-coleta nas dimensões espaciais e temporais, traduzindo-se em policultivos, em meio a áreas de vegetação nativa; em quintais agroflorestais ao redor das moradias com alta densidade de espécies alimentares e criação de animais de pequeno porte com raças caipiras; em criação de animais rústicos de grande porte nos campos nativos localizados nas cotas elevadas; e em coleta/manejo de espécies da flora nativa em diferentes altitudes para alimentação, práticas tradicionais de medicina, festejos, construções domésticas e plantas ornamentais para comercialização.

(…) As estratégias agroalimentares construídas estão ancoradas na combinação de agroambientes, conhecimentos tradicionais, cultura alimentar e gestão compartilhada dos recursos genéticos adaptados e da água. Tais conhecimentos foram transmitidos e adaptados ao longo de muitas gerações e vêm garantindo a vida das famílias e comunidades ao longo do tempo, em situações adversas” (Eidt; Udry, 2019, p. 94).

 

“(…) as estratégias agroalimentares e econômicas das famílias estão ancoradas:

Na agricultura tradicional e na criação de animais de pequeno porte, com prioridade para o consumo familiar, fundamental para a segurança alimentar, com protagonismo das mulheres.

No agroextrativismo, com destaque às plantas medicinais e frutos nativos do Cerrado com alto teor de vitaminas (como pequi, panã, cagaita, mangaba, etc.), essenciais para a saúde infantil e para a segurança alimentar e nutricional das coletividades.

Na criação de gado rústico e de animais de carga e transporte, com o uso de pastagens nativas, importante estratégia econômica e alimentar.

Na coleta de flores sempre-vivas, que confere identidade cultural aos grupos autodefinidos, além de constituir componente fundamental da renda monetária familiar anual” (Ibid, p. 105).

 

“A agricultura é desenvolvida, sobretudo, nos “quintais” e nas “roças”. Os quintais são agroflorestais e estão ao redor das moradias, onde se encontra uma alta diversidade de hortaliças (incluindo nativas), ervas medicinais cultivadas, frutíferas cultivadas e também pequenos cultivos, que contam com diversas variedades de mandioca, feijão, abóboras, amendoins, canas-de-açúcar, batatas, inhames, cafés, entre outros. Os pequenos cultivos desses gêneros nos quintais são justificados pelos(as) moradores(as) pela necessidade de se ter alimentos de fácil acesso e nas proximidades das moradias, para o dia a dia. Nessas áreas, é comum o uso de esterco de animais para fertilização. Nos quintais também se encontra a criação de animais de pequeno porte – galináceas e porcos de raças caipiras – e é comum manter algumas vacas para fornecimento de leite à família, além da criação de abelhas (nativas e africanas) e coelhos. Próximo às casas também se encontram as estruturas de beneficiamento (de mandioca, cana e milho), de armazenamento (de sementes, de alimentos diversos e de utensílios variados – ferramentas de trabalho, carros-de-boi e carroças, etc.)” (Ibid, p. 109). 

 

“Já as “roças” referem-se a áreas de cultivo mais extensas que podem estar próximas às moradias, nas cotas baixas, ou em diferentes patamares/altitudes na encosta ou mesmo sobre a serra. Nas cotas mais baixas, as famílias valem-se de vazantes de rios para o cultivo. Enquanto na serra, como ocorre o domínio de solos arenosos ácidos e distróficos, as famílias buscam manchas de solo mais argilosas e avermelhadas, como também aquelas mais escuras e úmidas, que são indicadores de “terras de cultura” ou de maior fertilidade natural. Também são usadas plantas indicadoras para localização desses solos. É comum uma mesma família ter mais de uma “roça”, até mesmo cinco roças, sendo todas manejadas ao mesmo tempo, em diferentes altitudes e dependendo dos ambientes, valendo-se do uso de rotação de culturas com pousio, para reposição natural da fertilidade dos solos por meio do uso da biomassa (“roça de toco”). A época de plantio ocorre na estação chuvosa, geralmente entre novembro e março, envolvendo diversas variedades locais, com destaque às seguintes espécies: mandioca, feijão, milho, arroz, fava, sorgo, cana-de-açúcar, abóbora, batata, batata-doce, maxixe, amendoim, inhame, entre outras, e também frutíferas de porte elevado. Ressalta-se que, a partir dos laços de parentesco e compadrio, há famílias que têm suas moradias e roças nas cotas mais elevadas e que, na época das águas, descem ao “sertão” ou às “beiras” do Rio Jequitinhonha para cultivar roças com parentes e/ou compadres/comadres, ou ainda para cultivar um “pedaço de terra própria”. Há, assim, uma elasticidade do sistema necessária para a agricultura realizada nas condições descritas e vital à segurança alimentar dos comunitários e comunidades. Tem-se, portanto, quintais-roças e roças que “andam” pela serra – seguindo a lógica de rotação de culturas e pousio, que varia no tempo e no espaço, segundo os critérios baseados no vasto conhecimento tradicional acumulado e nas necessidades dos grupos. O uso do trabalho familiar e de técnicas artesanais é constante nas atividades e há protagonismo das mulheres na agricultura. O preparo das terras pode contar também com o uso de tratores, mas sendo esse localizado e pouco significativo no todo. Em geral, fertilizantes químicos e pesticidas agrícolas são considerados desnecessários e prejudiciais à saúde das pessoas e ao ambiente como um todo, sendo a produção dos quintais e das roças destinada prioritariamente ao consumo familiar, ocorrendo também a venda de pequenos excedentes. Considerando as espécies cultivadas nas roças e quintais, têm-se catalogadas, até o momento, 94 espécies destinadas à alimentação, sendo 17 delas medicinais e condimentares. Ocorre ainda o uso de 15 espécies alimentares nativas, das quais duas são endêmicas e uma com indicadores de domesticação, segundo pesquisas em andamento. Ocorrem muitas trocas e doações de alimentos entre as famílias de uma mesma comunidade, assim como de sementes de todo tipo, e também relações de reciprocidade na realização do trabalho agrícola, como: mutirão, troca de dia, troca de serviço, dentre outras formas de solidariedade. Há fluxo gênico interno às comunidades e também entre comunidades, dados os laços de parentesco, casamentos e compadrios, o que garante a conservação dos recursos genéticos adaptados por meio de sua gestão compartilhada. Cabe ressaltar também o vasto repertório de receitas da rica culinária local, com destaque à “farofa”, prato típico das festas nessas comunidades (destaques feitos às festas religiosas e de casamentos, acompanhada de outros pratos), com prevalência da mandioca na cultura alimentar. Isso se confirma nas roças, tendo sido identificadas 26 variedades de mandioca com uma única família. Essa alta diversidade interespecífica e intraespecífica é que garante a produção nas condições locais e, consequentemente, a resiliência socioecológica, havendo segurança alimentar das famílias e das comunidades” (Ibid, p. 115-116).

 

 

Fonte:  EIDT, J. S.; UDRY, C. (editoras técnicas). Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil. Brasília: Embrapa, v. 3, 2019.

“Em todas as localidades, o agroextrativismo ocorre com a coleta de plantas medicinais, frutos nativos, fibras, óleos e madeiras utilizadas para construção de casas e benfeitorias locais. Os frutos do Cerrado são encontrados e colhidos livremente: “não têm dono, todo mundo pode panhá. A atividade é vista como momento lúdico e comumente realizada em companhia das crianças. A capacidade de localização dessa infinidade de plantas reflete/indica que os conhecimentos tradicionais associados estão presentes em todas as comunidades que compõem o sistema. São utilizadas pelo menos 35 espécies de frutos nativos comestíveis, 16 espécies de madeira para construções familiares e 83 espécies de plantas medicinais – identificadas até o momento. Essa elevada diversidade de espécies e conhecimentos tradicionais associados são a base de saberes e fazeres que permeiam práticas culturais em várias dimensões: alimentação, medicina tradicional, arquiteturas, ritos e festas. Destaca-se a vitalidade da transmissão intergeracional de conhecimentos que permitem o uso da recursagem local. Tais conhecimentos foram e continuam sendo fundamentais para a sobrevivência humana ao longo do tempo nessa área em contextos muitas vezes adversos, além de baixo acesso a serviços e políticas públicas” (Eidt; Udry, 2019, p. 116-117). 

 

“A época seca (abril a outubro) coincide com a coleta das principais flores sempre-vivas, ou seja, as famílias coletam flores no mesmo período em que o gado está nas pastagens nativas sobre a serra – ainda que haja espécies precoces. As flores sempre-vivas constituem-se em produtos florestais não madeireiros da flora nativa endêmica da Serra do Espinhaço; ocorrem nos campos rupestres do Cerrado e dizem respeito ao termo popularizado para essas inflorescências que, depois de colhidas e secas, conservam sua forma e coloração” (Ibid, p. 119).  

 

“Para os(as) apanhadores(as) de flores sempre-vivas, como se autodefinem, cada uma das flores e botões possui um nome que singulariza suas características e revela expressões/relações, como: espeta-nariz, carrasqueira, brejeira, etc., podendo variar de nome nas diferentes comunidades. Os(as) apanhadores(as) referem-se a essa atividade como “panha de flores”, podendo ainda aludirem ao ambiente onde são encontradas: “vou pra campina panhá flor”. O termo campina, adotado pelos(as) apanhadores(as), também pode referir-se a tudo que foi colhido nos ambientes de campos: “a gente panha campina, que dá no campo”. Além das flores, são coletadas folhas, frutos secos, sementes, etc., também referidos como “mercadorias”, vindas de distintos locais/ambientes de coleta (campos, serras, serrinhas, boqueirões, etc.), a depender da época do ano e da demanda. O manejo tradicional das flores sempre-vivas inclui: a permanência de, aproximadamente, 30% de indivíduos que são deixados nos campos para emissão de sementes e manutenção da população de plantas – chamada localmente de “restolho”; e o retorno para os campos nativos das sementes que caem no piso das casas (incluindo ranchos e lapas) após a arrumação das flores para transporte e comercialização (atividade conhecida como “pentear as flores”). Essa prática de devolução das sementes aos campos nativos refere-se ao enriquecimento e visa, também, à manutenção das populações dessas espécies (Oliveira et al., 2012). Nota-se a presença de flores também pelos caminhos utilizados pelos(as) apanhadores(as) nos campos nativos, o que significa que são semeadores dessas flores ao longo de toda essa paisagem manejada” (Ibid, p. 120).

 

 

Fonte:  EIDT, J. S.; UDRY, C. (editoras técnicas). Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil. Brasília: Embrapa, v. 3, 2019.

“As espécies de maior valor comercial pertencem ao gênero Comanthera e constituem importante fonte de renda monetária para as famílias e referência sociocultural fundamental. É comum as flores significarem a primeira renda de jovens, que desde cedo iniciam a prática da coleta com os pais. Comumente, entre as comunidades, o termo “flores” reporta-se às inflorescências esbranquiçadas, com formato de “margaridinha”; e aquelas com outras formas e cores são chamadas de “botões”. Enquanto os consumidores denominam todas como “sempre-vivas”, termo popularizado no comércio regional e nacional, os comerciantes utilizam o termo “flores secas”, incluindo o grupo das “sempre-vivas”, o grupo dos “botões” e todas as demais partes de plantas nativas do Cerrado (frutos secos, folhagens, etc.) coletadas e comercializadas nos mercados nacional e internacional de artigos ornamentais” (Eidt; Udry, 2019, p. 119).

 

 

Fonte:  EIDT, J. S.; UDRY, C. (editoras técnicas). Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil. Brasília: Embrapa, v. 3, 2019.

“O Sistema de Agricultura Tradicional da Serra do Espinhaço, também conhecido como ´apanhadores de flores sempre-vivas´, localizado em Minas Gerais, na porção meridional da Serra do Espinhaço, recebeu (..) o reconhecimento internacional concedido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), denominado Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM). Este certificado visa reconhecer os patrimônios agrícolas desenvolvidos por povos e comunidades tradicionais em diversas partes do mundo. As comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas passam a ser o primeiro SIPAM no Brasil, o quarto da América Latina e o 59º patrimônio agrícola em todo o mundo.

“Estes sistemas de patrimônio agrícola são caracterizados pela combinação de quatro elementos: biodiversidade, ecossistemas resilientes, conhecimento tradicional e uma valiosa herança cultural, ou seja, uma identidade. Depois de ter conhecido o trabalho destas apanhadoras de flores sempre-vivas há um quinto elemento que incluo como muito importante: a dignidade das mulheres rurais”, destacou o Representante da FAO no Brasil, Rafael Zavala”.

 

Fonte: Apanhadoras e apanhadores de flores sempre-vivas recebem reconhecimento internacional da FAO como o primeiro Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil. FAO no Brasil, Brasília, 11 mar. 2020. Disponível em: <http://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/1265788/>. Acesso em: 19 ago. 2020.