A agricultura “no brejo” nas comunidades do Brejão e do Pratudinho, município de Jaborandi, BA
As roças no brejo ou roças de esgoto são cultivadas na vereda, graças a um sistema de drenagem elaborado pelos próprios moradores das comunidades. Com a drenagem, torna-se possível o cultivo de várias espécies. Os sistemas de drenagem, denominados valas ou esgotos, medem58 por volta de 0,50 a 1 metro de profundidade por 1 metro de largura. O comprimento dos canais varia de acordo com o planejamento da área para atender ao tempo, à quantidade de pessoas e de sementes disponíveis para o manejo do sistema.
Esse sistema é similar ao que foi descrito por Eloy e Lúcio (2013) nas Unidades de Conservação (UCs) do Jalapão. Com as roças de esgoto, é possível produzir nos sistemas durante todo o ano. As roças no brejo ocupam de 0,39 hectares a 2 hectares por área de cada propriedade familiar. O gráfico 4 apresenta as dimensões das áreas de roças de esgoto da comunidade do Pratudinho. No anexo há alguns desenhos de sistemas de cultivos.
As roças de esgoto são as práticas que geram as fontes principais da alimentação das famílias de agricultores no território. Os agricultores costumam falar de suas roças no brejo como: “roças sem importância, sem importância nenhuma, nem dá para tirar um dinheirinho dali”. Apesar de, aparentemente, não terem relevância econômica para a comunidade, as quais, por vezes, envergonham-se de apresentar, o que se pôde observar, a partir desta pesquisa, foi o inverso: roças muito diversificadas em pequenos espaços que produzem alimentos para as famílias, agregados e familiares distantes que muitas vezes vão à comunidade. O número de espécies e variedades plantadas e os consórcios observados são admiráveis.
Quanto ao início do trabalho nas roças de brejo, quando a área a ser plantada já possui as valas (ou canais) prontas, os agricultores limpam-nas, retirando a vegetação que cresceu em seu interior, e refazem as paredes dos canais. Dessa forma, os agricultores não precisam fazer novas valas, pois capinam os drenos e deixam-nos bem limpos. Assim, a água pode escoar livremente para o rio. Esse é um trabalho geralmente feito pelos homens da família e pelos filhos mais velhos. Após a conclusão do trabalho de limpeza nos canais, é necessário esperar cerca de duas a três semanas para que haja a completa drenagem da área.
Depois que a área está bem drenada, é o momento de pôr fogo na área em questão. Para a queima da área, é necessário compor um bom aceiro em volta dos drenos de fora. Os aceiros, que costumam ser criados tanto por homens quanto por mulheres, são produzidos utilizando-se a enxada. Quando necessário, são utilizados o facão e o podão. Algumas plantas são preservadas desse “foguinho” também. São elas: buritis, coquinhos ou outras árvores do Cerrado de grande porte, ou, ainda, as exóticas cultivadas, tais como as bananeiras, mangueiras e a cana-de-açúcar, cujos aceiros são próprios.
Após serem criados todos os aceiros necessários de acordo com o conhecimento daquela família, os agricultores devem aguardar um dia com menos vento para queimar a área. O fogo é posto na “boquinha da noite”, como costumam dizer. Mas, antes da queima, molham todo o aceiro com bastante água para terem a certeza de que impedirão possíveis incêndios, pois o fogo é rápido. Como as áreas queimadas são pequenas, havendo vizinhos e parentes para acompanhar a queimada e ajudar a não deixar possíveis focos de incêndio se dispersarem, em cerca de vinte minutos ou meia hora, a área está pronta.
O momento de preparar a terra para o plantio é de alegria, é sinal de que a chuva já chegou. O momento da queima é particular e especial para as famílias que já estão no território há mais tempo. É o momento de reunir a família, os vizinhos e os colegas. É a hora do mutirão. É o momento não só de ensinar os mais novos, mas também de estar junto, rir, conversar e de chacota um ao outro.
É muito difícil utilizarem essa prática sem contarem com os vizinhos. Ou seja, essa é uma prática, ainda atual, de mutirão (como poucas no lugar). Esse é um dos manejos de fogo utilizado de forma controlada. No dia seguinte ou dois dias depois, a área já está pronta para ser semeada.
O fogo é uma das práticas utilizadas para a gestão da fertilidade dos terrenos. É utilizado para a “limpeza” da área que ficou em pousio61. Os agricultores comentam que, há cerca de 30 anos, utilizavam as roças de esgoto por três a cinco anos, no máximo; mudavam de lugar e só retornavam para aquele lugar cerca de oito a dez anos depois. Atualmente, como as famílias não têm mais área suficiente para realizarem esse pousio, elas estão fixas em um só local, de modo que fazem pousios de dois a três anos, no máximo, nas parcelas cultivadas. Após o pousio, as famílias queimam a vegetação que regenerou na parcela, promovendo uma capina rápida ou limpeza do terreno, tendo também como responsabilidade a adubação do solo. Atualmente, as famílias da região, quando têm condições financeiras, costumam lançar mão de adubos químicos no momento da semeadura do feijão.
Um ou dois dias após a área ser queimada, é a hora de toda a família retornar à área e realizar a semeadura. Nesse momento, geralmente utilizam a matraca, uma plantadeira manual, numa área preparada para o plantio.
Uma das vantagens da roça de esgoto é que ela permite o plantio durante todo o ano; provêm mais rendimentos que as roças de toco; e podem funcionar como repositório de agrobiodiversidade em escala regional,
Os agricultores das comunidades do Brejão e do Pratudinho utilizam as áreas de roças no brejo para plantarem muito além do feijão, milho, mandioca e cana de açúcar. Suas roças apresentam resistência e adaptabilidade às condições locais e se mantêm, em vários casos com alta variabilidade genética. Os agricultores procuram diversificar no espaço total da roça no brejo, épocas de cultivo e áreas disponíveis para as culturas de acordo com as necessidades de cada família. Como não possuem mais espaço suficiente para fazerem o pousio necessário, utilizam diversas estratégias para produzirem mais e de forma diversificada; uma delas é por meio da utilização de consórcios. Outra estratégia tem sido a utilização de pequenas parcelas na área da “roça de esgoto” para as suas hortas.
A roça de toco
As roças de toco são sistemas de cultivo realizados em terrenos desmatados por derrubada e queima sem retirar os tocos (MAZOYER; ROUDART, 2010).
A roça de toco era um sistema muito utilizado e tem sido abandonado paulatinamente, devido à diminuição das terras e da mão de obra. Das espécies antes cultivadas nesses sistemas produtivos, como a mandioca, abóbora, melancia, batata e inhame, algumas se perderam, como é o caso da batata, segundo dizem, e outras tomam lugar na roça no brejo. Elas estão cada vez mais raras nas comunidades do Vale dos rios Pratudinho e Pratudão, devido a diversos fatores. O primeiro deles refere-se às áreas reduzidas de cada família nas comunidades. Outro motivo que os levou a reduzirem as roças de toco foi a maior fiscalização dos órgãos ambientais, iniciada na região, principalmente após a criação do Parque (o Revis). Na comunidade do Pratudinho, por exemplo, o ICMBio não permite que as famílias trabalhem nesse tipo de sistema produtivo.
Fonte: SOUZA, Cláudia de. Nos interstícios da soja: resistências, evoluções e adaptações dos sistemas agrícolas localizados na região do Refúgio de Vida Silvestre das Veredas do Oeste Baiano. 2017. 311 f., il. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017.