Carta de reinvindicação das Parteiras tradicionais do Brasil

À Ilma. Nísia Trindade de Lima

Ministra da Saúde do Brasil.

 

 Existem no país cerca de 60 mil parteiras tradicionais em todo território nacional. Essas mulheres são responsáveis por um número expressivo de nascimento nas zonas rurais e urbanas, atendendo o parto com amor e doçura, perpetuando uma das mais antigas profissões do planeta. Em um dossiê elaborado por pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 2021 para a instrução do processo de registro do bem como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, as parteiras tradicionais são descritas como “mestras do ofício do partejar, detentoras de um repertório de saberes e práticas acerca de todas as etapas da gestação (pré-natal, parto e pós-parto)”. Limitar seu papel à assistência no nascimento de crianças, portanto, seria reducionista.Segundo o documento, as parteiras atuam com uma abordagem de atendimento contínuo, integral e holístico, que abrange “processos fitoterapêuticos, prescrições alimentares preventivas e curativas, mediação religiosa e regimes de conduta social”. Mais importante ainda, remédios, banhos, chás, garrafadas, rezas e conselhos não são direcionados apenas às gestantes, puérperas e crianças, mas também a outros membros da comunidade.O dossiê destaca que “elas ainda estendem o cuidado para a família da gestante, trabalhando no aconselhamento, resoluções de conflitos e produção de rede de apoio necessária para o bem-estar da mulher, ajudando a melhorar a dinâmica doméstica e as relações da vizinhança”.        

 No dia 05 de Setembro na 104a reunião do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foi reconhecido o “Ofício, Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil” como Patrimônio Cultural do País. Reconhecimento mais do que merecido.  Mas para além do reconhecimento do ofício e práticas das parteiras pela Cultura, que é muito interessante, precisamos ter o reconhecimento como prestadoras de serviços à Saúde pública, pois é o que nós parteiras fazemos ao longo de anos, desde que o mundo é mundo.

 Em referência aos estudos de Lander (2005), os povos que estavam sendo dominados teriam que expressar as formas e os modos viventes eurocêntricos para um bom resultado do objetivo civilizatório. Todo conhecimento tradicional foi relegado, perseguido e não valorizado dentro dos espaços formais de aprendizado e nas instâncias formais de saúde. A educação passa a reproduzir um modelo que não representa a identidade das comunidades tradicionais, afastando-se da realidade e negando esses saberes, estabelecendo uma dependência em muitos aspectos da vida cotidiana, que antes eram resolvidas através dos saberes tradicionais, como o parto realizado por parteira.

 Quando se fala de conhecimento tradicional reporta-se ao conhecimento que foi perseguido e excluído, muitas vezes por imposições religiosas e políticas. Estamos falando de um Estado de exceção, onde esses saberes, em um dado momento da história, foram considerados ilegais. Essas mestras, parteiras, raizeiros e benzedores, herbalistas foram considerados fora da lei. Foram em si marginalizados pelos seus saberes e ridicularizados como charlatões por não se enquadrarem nos modelos cartesianos da ciência. Dessa forma, o conceito eurocêntrico de ciência revalida e respalda essa perseguição.

 Embora dentro do processo histórico os conhecimentos tradicionais não sentavam na cadeira da academia, a própria eficácia do saber tradicional e a marginalização vivida por esses povos, sem direitos adquiridos de cidadãos, auxiliaram a sua sobrevivência, permitindo que esse saber tradicional sobre plantas, parto, orações e cura, de uma forma geral, resistissem e fossem repassados, através da prática diária e da oralidade, independente dos espaços formais.                  

 Esse bem imaterial que foi alvo de extermínio, hoje está sendo valorizado, com estudos que demonstram que essas práticas e inovações desenvolvidas conservam a diversidade biológica dos ecossistemas principalmente das florestas tropicais. Dentro de algumas correntes de pensamentos contemporâneas estes conhecimentos transgeracionais estão sendo valorizados, movimentando recursos, sendo patenteados e levado para fora, como é o caso da biopirataria, que movimenta hoje cerca de US$60 bilhões por ano, sendo o Brasil um dos maiores prejudicados com essa prática, em virtude de sua inigualável diversidade cultural e biológica.          

  1. PARTEIRAS TRADICIONAIS – “Enquanto houver vida humana na Terra existirá parteira tradicional” (Dona Maria dos Prazeres – Parteira Tradicional)

 

        A procura pela técnica e saberes sobre plantas medicinais e do parto vem crescendo a cada dia, surgindo uma necessidade de articular essas mestras e mestres para sistematizar e repassar esses saberes. Diante da demanda de construção dessa ponte entre o saber tradicional e o buscar desse conhecimento, tem surgido encontros e formações de compartilhamento de saberes, além da busca direta por esses mestres nas comunidades rurais, quilombolas e indígenas, como é o caso das formações de parteiras que tem surgido em todo território nacional. A exemplo, tivemos a formação de parteiras realizada por Dona Flor do Moinho, parteira do remanescente quilombola do Moinho, território a que ela pertencia. Antes do seu falecimento formou mais de 20 mulheres que iam para seu território aprender sobre o parto tradicional e as plantas utilizadas durante a gestação, parto e nascimento, além do puerpério.            Em Pernambuco, a parteira Dona Maria dos Prazeres referendada nacionalmente, com o prêmio Bertha Lutz e também como patrimônio imaterial de Pernambuco, junto com suas “pupilas”, nome que ela denomina suas aprendizes, já teve mais de 80 pupilas que passaram por sua mão e se tornaram parteiras.

 A parteira Suely Carvalho também tem uma formação que pariu novas parteiras aumentando o leque de mulheres que buscam exercer os saberes do partejar como forma de atuar no mundo. Além de todo repasse das parteiras tradicionais em sua comunidade na formação de novas parteiras através da oralidade e da experiência no acompanhamento ao parto, dentre outras parteiras que realizam formações ou oficinas esporádicas.

 Quijano (2005) alerta que, apesar da imposição de uma lógica hegemónica colonial sobre as diversas culturas, por meio de práticas como o consumismo, o protecionismo, as leis de patentes, o cientificismo, a resistência e o cuidado manifestados por essas comunidades e seus saberes em relação ao planeta e à humanidade têm despertado cada vez mais atenção.

 No entanto, é importante destacar que esses saberes tradicionais não têm sido devidamente valorizados nos contextos formais de educação, tanto nas escolas urbanas quanto rurais, bem como nos espaços de saúde. Essas mestras de saberes tradicionais frequentemente são mantidas à margem, não sendo adequadamente integrados a esses espaços, e suas contribuições são frequentemente subestimadas pelos processos convencionais de escolarização e saúde.

  1. A Luta e desafios das Parteiras Tradicionais no Brasil

       A procura pelo parto tradicional por mulheres na zona rural e nas periferias e o atendimento do mesmo nos domicílios ainda é um desafio do ponto de vista da relação entre o poder público e a assistência ao parto realizado pelas parteiras tradicionais. Inúmeros são os relatos da dificuldade de registro de nascimento; as declarações de nascidos vivos (DNV) não são acessadas pelas parteiras e muitas vezes preenchidas pelas Unidades de Saúde, dificultando os dados estatísticos do atendimento realizado por parteiras. As parteiras precisam custear o material para parto que deveria ser repassado pelo sistema de saúde local, não existindo também interação entre os centros de saúde quando a gestante precisa ser deslocada ao hospital, assim como não existe reconhecimento, nem recurso destinado às parteiras para o fortalecimento dos seus saberes, trocas de experiências e remuneração pelos serviços prestados. Sem falar da perseguição e das discriminações vividas nos centros de saúde.

  Embora no Brasil existam mais 60 mil parteiras, esse cadastro não está sendo feito pelo Ministério da Saúde e muito menos o mapeamento das novas parteiras. Nas comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e rurais o parto realizado por parteira não está sendo estimulado, quando não proibidos, e a gestante viaja horas para uma unidade de saúde, vivenciando situações de abuso e de violência obstétrica, além de ser usurpada da sua vivência a forma comunitária, afetiva e espiritual do nascimento de acordo com suas crenças.        

  No último Fórum das Nações Unidas sobre questões indígenas nos dias 14 e 15 de Abril de 2024 reuniram-se parteiras de todo continente americano, depois de três reuniões antecedentes ao fórum, onde foram discutidos os desafios das parteiras tradicionais nos seus respectivos países e ficou claro que esse descaso em relação às parteiras tradicionais está presente em todos os territórios. A partir desse referido encontro estamos articulando a Aliança das Parteiras Tradicionais do Continente Americano e entregamos à ONU as reivindicações do movimento.  

 À luz das considerações supracitadas, no dia 24 de maio de 2004, na Roda de Parteiras do RAÍZES: 7° Grande Encontro de Raizeiros, Parteiras, Benzedeiras e Pajés na Chapada dos Veadeiros, discutimos sobre esses desafios vividos e na presença de muitas autoridades presentes do Ministério da Saúde,Conselho Nacional de Saúde, FIOCRUZ, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério do Meio Ambiente. No Encontro nos comprometemos a escrever esse documento reivindicatório especificamente encaminhado ao Ministério da Saúde com as seguintes reivindicações:

  • Audiência com a Ministra Nísia Trindade Lima

  • Volta do Programa Nacional de Parteiras Tradicionais

  • Cadastramento e Mapeamento da Parteiras do Brasil

  • Acesso pelas parteiras tradicionais à declaração de nascido vivos – DNV e acesso aos cartórios de todo território nacional para registro de nascimento pelo parto domiciliar realizado por parteira.

  • Formação continuada das parteiras tradicionais considerando os saberes tradicionais, tendo como mestras as próprias parteiras referendadas do Brasil, indicada pelas próprias comunidades, além de profissionais da Saúde sensíveis à causa.

  • Remuneração do serviço prestado e efetivação de pagamento de fato da tabela do SUS, onde existe uma remuneração para as parteiras tradicionais

  • Material de parto concedido pelo Sistema Único de Saúde – volta da bolsa das parteiras

  • Valorização e estruturação do parto realizado por parteira nas comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais do território brasileiro, além de parteiras urbanas, uma vez que a mulher deve ter o direito de escolher onde e com quem quer parir.

  • Participação ativa das parteiras tradicionais em todas as discussões relacionadas ao parto tradicional realizado por parteira – “Nada sobre nós sem nós”.

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