Povo Kalunga
As comunidades Kalungas baseiam seus sistemas agrícolas em uma grande diversidade de espaços, seja por meio do cultivo ou do manejo da paisagem. Os principais ambientes de produção são: as roças em terra seca, as roças de vazante, as capoeiras, as pastagens nativas, os pastos plantados (roça de pasto), o cerrado (mato/sertão), os quintais e os rios. Cada um desses ambientes apresenta uma importância diferente de acordo com a região do território e/ou da estratégia socioeconômica adotada pelas famílias. Portanto, as atividades descritas a seguir não são homogêneas ao longo do território, mas elementos para entender o complexo sistema agroextrativista Kalunga.
Fonte: Fernandes, Cecília Ricardo; Eloy, Ludivine. A diferenciação territorial e integração ao mercado dos produtores agroextrativistas Kalungas, Goiás. In: Stéphane Guéneau; Janaína Deane de Abreu Sá Diniz, Carlos José Sousa Passos organizadores (organizadores). Alternativas para o bioma Cerrado: agroextrativismo e uso sustentável da sociobiodiversidade; Brasília, DF:IEB Mil Folhas, 2020, p.287-325.
O principal espaço produtivo da comunidade Kalunga são as roças de terra seca, também chamadas de roças de toco (Figura 2), localizadas em fitofisionomia de cerrado típico, cerrado denso, cerradão, mata de galeria ou mata ciliar (sertão, mato e/ou mata). Essas roças são geralmente abertas logo após as primeiras chuvas (entre outubro e dezembro) por meio da técnica de corte e queima. Os produtores usufruem dessas parcelas produtivas por um período de quatro a seis anos, após o qual levam o cultivo para um novo local, que na maior parte das vezes é uma antiga roça (capoeira). O período de pousio varia de seis a 50 anos, dependendo da disponibilidade de áreas aptas para o cultivo. As roças Kalungas também se destacam por serem espaços produtivos ricos em agrobiodiversidade. Entretanto, o presente capítulo não irá adentrar no detalhamento das espécies e variedades que compõem essa diversidade agrícola, por falta de dados consolidados.
Nos primeiros anos das roças, os Kalunga costumam plantar, além dos cultivos principais, espécies de ciclo longo que continuam produzindo após a interrupção dos cultivos anuais, tornando as capoeiras espaços frequentemente visitados em busca de seus produtos, mas que requerem poucos cuidados. Assim como o quintal, além dessa função produtiva e nutricional, as capoeiras também funcionam como bancos de agrobiodiversidade: a cada nova roça, as famílias recorrem às estacas e raízes que estão nas suas capoeiras (manivas de mandioca, brotos de bananas, sementes de abóbora).
As roças de vazante no Território Kalunga estão concentradas ao longo dos grandes rios do território, os Rio Almas e o Rio Paranã (Figura 3). Nesses espaços, a fertilidade das terras que são inundadas no período das chuvas é aproveitada durante a estação seca, quando o nível das águas desce. O milho e o fumo são duas espécies cultivadas frequentemente nesses espaços.
3.1.4 Pastagens nativas As fitofisionomias de campo sujo, campo limpo e veredas são utilizadas para o pastoreio do gado (Figura 4). A roça de gado mais encontrada é uma mistura entre o Curraleiro e o Nelore, que apresentam maior resistência à seca e uma tolerância ao consumo de capim seco. As pastagens nativas são manejadas com o fogo ao longo do ano para fornecerem alimento ao rebanho durante a época da seca. Os primeiros manejos são feitos entre maio e junho (início da estação seca), 20 à 40 dias antes da solta dos animais. É comum que ao longo da estação seca ocorram outras queimadas para renovação das pastagens, mas esse manejo varia de acordo com a necessidade de cada comunidade de um ano para o outro.
Em algumas comunidades dentro do Território Kalunga, o desenvolvimento da pecuária explica a plantação de pastos com gramíneas exóticas, dos gêneros Brachiaria, Andropogon e Hyparrhenia (capim Jaraguá). Essa prática auxilia na garantia de áreas mais controladas paro o pastoreio ao longo da seca e proporciona um ambiente para cuidar dos animais que necessitam de atenção especial (vacas paridas, bezerros e animais doentes). As roças de pasto, ou simplesmente pastos, como são chamadas pela comunidade, estão geralmente localizadas próximas às casas. As superfícies destes pastos variam bastante entre as diferentes comunidades, com médias entre 0,1 e 0,7 ha por família, e nas localidades onde a pecuária tem maior importância econômica, as roças de pasto tendem a substituir as roças de toco e capoeiras.
Localizados ao redor das casas, podem se estender até as roças de toco. Abrigam animais e cultivos consumidos no dia a dia e são os espaços cultivados mais frequentados pelas famílias, refletindo a rica agrobiodiversidade da comunidade. Neles, encontram-se alimentos típicos das roças, como a mandioca, o milho e o feijão de corda, mas que são destinados ao consumo diário da família. Também estão presentes as verduras e temperos mais apreciados em pequenas hortas suspensas ou protegidas. Encontramos nesses espaços uma grande gama de frutas exóticas e espécies nativas que foram selecionadas na hora da limpeza do terreno para permanecerem junto a casa (como o pequi- Caryocar brasiliense, a cagaita – Eugenia dysenterica), o jatobá- Hymenaea courbaril, o buriti- Mauritia flexuosa, a sucupira- Pterodon emarginatus e o coco indaiá- Attalea dubia). Além de exercerem a função de reservatório de agrobiodiversidade, os quintais também são espaços de experimentação de novas variedades, que podem ser depois multiplicadas para as roças, como acontece com o abacaxi, a mandioca e a cana.
Outro ecossistema manejado pelas comunidades Kalungas são as áreas de cerrado ao redor das casas e roças. A manutenção da saúde desses ambientes é fundamental para o bem-estar das famílias, que constantemente usufrui do cerrado, seja em busca de alimento, remédios ou matéria-prima para construção e reparo das casas. Essas espécies são consumidas in natura ou processadas, e podem ser armazenadas para o consumo ao longo do ano ou comercializadas na própria localidade, em outras comunidades ou na cidade.
Em alguns casos, para a manutenção das áreas de colheita das espécies frutíferas, a comunidade usa o fogo no início da estação seca e antes do final da estação chuvosa, para impedir que fogos de fim de estação seca entrem na área durante a floração ou a frutificação. Esse fogo precoce nas áreas de colheita também favorece a colheita do ano seguinte, que vem mais abundante em consequência da renovação da fertilidade do solo e da diminuição do estrato herbáceo e arbustivo.