“Tia Remédio, é assim que Bernardina Afro de Torres é conhecida na comunidade do Sertão, microrregião da Parida, localizada a 36 km do centro de Alto Paraíso de Goiás. Seu apelido já explica sua especialidade de raizeira. Mulher forte, pequena em estatura, mas de coração grande e de muita fé, acolhe a todos que a procura, sempre conectada com Deus, através do contato com as plantas e de suas orações. Seu esposo Delcino Cardoso da Silva, também conhecedor das plantas que curam, tanto do quintal, como do Cerrado; com seu olhar doce e profundo nos mostra um pouco da tranquilidade de sua alma.
Sempre que um dos 11 filhos adoecia, Tia Remédio usava das plantas que conhecia. Como ela lembra, aprendeu com a mãe ‘curiando’, prestando atenção. Sua mãe era parteira e raizeira e fez a maioria dos seus partos. Conta a Tia Remédio que um de seus partos foi bem difícil. Durante seu sono, na noite do parto, ela teve uma revelação: ‘uma mulher disse para eu me apegar a estrelinha no céu, que eu seria muito feliz. Aí, assim que eu acordei, eu tive fé em Deus, olhei pro céu e logo começo a dor’. ‘Delcino fez um chá de cidreira, pimenta de macaco e manjericão pra eu beber e a bolsa estourou. Ele saiu pra chamar minha mãe, mas ela não pode vir porque tava cuidando de uma neta que passava mal, e mandou ele me dizer, que Deus estava comigo’. Quando o marido retornou, o filho já havia nascido como sua mãe, Dona Maria, já havia previsto. “Dona Bernarda”, como assim também é conhecida, conta que amarrou uma corda no telhado da casa, passou essa corda pelas costas e embaixo dos braços ‘que era pra ter força’, e no chão, colocou uma bacia grande com lençol para aparar o menino. Conta ainda que foi o marido que cortou o umbigo com uma tesoura e queimou a ponta com um garfo aquecido no fogão a lenha ‘era assim que fazia antigamente’.
Bernardina e Delcino casaram-se no ano de 1973. Relata que, de quando se mudou pra onde reside, até o ano de 1979, corria muita água no Rio São Lourenço e na Grotinha, bem nos fundos de sua residência. Foi por volta de 79 que ela se lembra do Rio começar a secar, quando fazendeiros começaram a “tirar o mato pra por gado”. Sábia, Tia Remédio diz: ‘sem mato não tem água’.
Quando vai coletar plantas no mato, ela diz que sempre pega com pensamento em Deus, e pede para aquele remédio fazer a cura. Ela explica que hoje em dia se for pegar planta ‘o povo do IBAMA quer multar você’, então ela colhe mais do quintal. ‘Tem jatobá, cagaita, tem uns remédios que a gente ainda vê, outros não. O velame branco eu não vejo mais, acabou. Usei muito quando os meninos enchia tudo de caroço no corpo. Sangue-de-Cristo apanhava a folha e cozinhava para dar banho e alisar a pele, e a batata fazia o chá para os meninos beber’, lembra ela. Benzia de quebrante, arca caída, mas hoje não benze mais, mas faz orações, pois se tornou evangélica.
“Conta-nos que quando adoece, toma remédios feitos com as plantas de lá do Sertão, mas se não melhorar, eles procuram um médico. Relata que há nove anos, Seu Delcino sofreu o primeiro Acidente Vascular Cerebral (AVC), quando ficou cerca de três semanas sem caminhar… ‘foi quando ia fazer um mês eu voltei pro Sertão pra tratar dele em casa, porque nóis tava em Alto Paraíso. O médico disse que ele não ia caminhar, mas o primeiro médico é Deus, então eu comecei a banhar ele, da cintura pra baixo, que tava inchado, com chá de casca de baru e folha de uma planta que o povo chama de dipirona ou aspirina, umas três vezes, foi aí que logo ele pegou o cabinho de vassoura e foi andando, andando e tá ai até hoje’. Isso nos foi relatado no início de 2016. Em setembro deste mesmo ano, Seu Delcino sofreu o segundo AVC, permanecendo acamado até o dia 04 de abril de 2017, quando faleceu, deixando muitas saudades para todos que tiveram o prazer de conhecê-lo, especialmente para seus filhos, netos e sua companheira há mais de 40 anos”.
Antes do acontecido, tivemos o prazer de ouvir ensinamentos de Seu Delcino sobre a relação da lua com a agricultura. Homem que já plantou roça de feijão, mandioca, e até arroz, que segundo ele, ninguém acreditava que ia dar, mas chegou a colher ‘5 sacas’. Seu Delcino também era entendedor de re-médios e nos explicou que colheita e plantio, tem que ser de acordo com a lua: ‘semente é bom plantar na lua minguante ou crescente. Na nova é danado pra dar broca, aí come a raiz das plantas. Na cheia é só pra fazer colheita. Se plantar roça na lua cheia, só dá folha, já na nova por exemplo, é bom pra dá feijão, cana, bananeira. Mas pra fruta, tanto faz cheia como na nova. Remédio é bom fazer na crescente’.
Tia Remédio acredita que ‘hoje está difícil de ensinar os remédios, porque os médicos não acreditam no remédio caseiro, só nos remédios de farmácia’. Conta que chegou a tomar remédio de farmácia para pressão alta, mas lembra que ‘embrulhava o estômago’. Então começou a usar chá de folha da cana-caiana e também a folha de amora e se sente bem melhor.
Sua filha caçula, Dena (Adenilza), grande parceira e facilitadora deste Projeto, utiliza diversos chás e macerados que aprendeu com sua mãe. Tem grande interesse no aprendizado sobre as plantas medicinais, e até nos ensina receitas: ‘quando eu percebo que uma comida me fez mal, eu faço um café sem açúcar com casca de laranja seca, faço até pro meu filho que só tem quatro anos, e o efeito é muito positivo, se a pessoa tiver vomitando, corta rapidinho’. ‘Eu também tomo sempre o algodãozinho do campo porque eu sei que é bom para problemas no útero. Quando tenho a sensação de inchaço no estômago por ter tomado comprimido de farmácia, tomo logo ervacidreira (Lippia alba) macerada na água. Também tomo assim quando estou com insônia’.
Dena ainda nos relata que bem no início de sua gravidez, sentia fortes dores no baixo ventre, que se irradiavam para as pernas. Por volta de 40 dias de gestação, sua mãe lhe fizera um chá de mentrasto que foi como “tirar com a mão”. Após ter tomado o chá uma única vez, Dena se livrou das dores que a incomodava seriamente há dias. E foi por essa e outras ocasiões que Dena tem aprendido sobre o poder de cura dos vegetais e faz o uso corriqueiro do jardim medicinal que é o nosso Cerrado, e assim, valoriza e busca auxiliar na perpetuação do ofício de sua mãe.
É comovente escutar Tia Remédio dizer: ‘se eu soubesse escrever, eu até fazia uma redação pra falar da tristeza que eu passo. Tem dia que eu sento na beira do rio que, agora tá sequinho minha filha, e choro, choro, pensando o tanto que aqui tinha água… Meus menino foram tudo criado aqui, pegando peixe no fundo de casa. Tinha pião, traíra, corró… todo mundo comia peixe frito, hoje, não tem mais nada’ – lembra ela saudosa. ‘Tem água no tanque pra lavar, mas nunca que é igual do rio. No rio é mais saudável né… meus menino, tinha dia que sumia pra berada do rio, derrepente, aparecia com as vareta cheia de peixe, tinha um que dizia: mamãe, nem precisa de carne hoje.’ Tia Remédio ainda diz: ‘quem está acabando com o mundo é o homem’”.
Fonte: Ribeiro, Daniela. et al. Raizeiros de Alto Paraíso : Saberes Ameaçados. Alto Paraíso de Goiás: Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás, SEDUCE, 2017. v. 1, p. 34-38.
Disponível em: https://youtu.be/g9ynNdIWXdM