De mãos limpas e almas lavadas. Os saberes/fazeres das lavadeiras da Cidade de Goiás (GO)

A Cidade de Goiás, situada às margens do Rio Vermelho, foi fundada em 1727 por Bartolomeu Bueno da Silva Filho (apelidado de Anhanguera) com o nome de Arraial de Sant´Anna. Em 1739, tornou-se Vila Boa de Goiás em homenagem a Bartolomeu e aos indígenas Goyazes, que já habitavam o território, e passou a chamar-se Cidade de Goiás em 1918.
As lavadeiras da Cidade de Goiás (GO) formaram gerações de mulheres que mantiveram ativa a vida social de uma cidade marcada pelo empreendimento colonial.
Se por um lado, as dores e silenciamentos reforçaram o processo de invisibilidade social dessas mulheres - discriminadas por serem negras, viúvas, mães solteiras, iletradas e pobres - por outro lado, os saberes ancestrais colocados na prática por seus fazeres, contribuíram como forte expressão de limpeza e higiene, imprescindíveis no processo de assepsia da sociedade.
A relação das lavadeiras com a natureza era constante, pois extraiam da mata ciliar ervas de São Caetano, usadas como buchas na lavação das roupas. Sementes e cascas de plantas eram utilizadas como matérias primas para a feitura do sabão de bola. Algumas madeiras encontradas nas matas ciliares eram queimadas e transformadas em cinza para feitura da dicuada, um tipo de soda caseira, adicionada a matéria prima do sabão (sabão dicuada).
Muitos materiais de origem animal, vegetal e mineral eram utilizados pelas lavadeiras na lavagem de roupas e na feitura do sabão de bola. Entre os materiais mais utilizados estão o esterco bovino misturado com areia para remoção de sujeira pesada nas roupas de algodão; o sabugo de milho e a erva de São Caetano como escova.
Das plantas utilizavam a casca, a seiva, a resina, a goma, a cinza e o carvão para a eliminação da sujeira. Das plantas floríferas o patchuli oferecia o aroma; a acidez de folhagens como o mamoeiro eram substâncias utilizadas na feitura da bola de sabão.
De origem animal, utilizavam a banha de porco. Depois de cozinhada, a banha era frita e despejada em tachos, sendo adicionada à decoada (soda caseira, feita de cinza) para fervura, e finalmente, transformada em sabão.
Os rios e córregos da Cidade de Goiás constituiram em ambientes que fomentavam redes de apoio social e pessoalidade na construção das relações de confiança entre as lavadeiras. Elas compartilhavam experiências comuns na luta pela sobrevivência; seja nos pequenos auxílios durante os períodos ocasionados pelas chuvas, nas entreajudas no cuidado das crianças, no partilhar de algum alimento e apoio com remédios; atitudes que fomentavam a construção de uma confiança baseada na solidariedade.
Auxílios que estreitavam os vínculos pessoais também criavam relações abaladas por conflitos gerados por fofocas, o que se percebe nas cantigas.
"A folha da bananeira de comprida vai ao chão,Quem tiver língua comprida, faça dela cinturão (uma diz). A folha de bananeira de tão velha despencou.O olho de certa gente de tão feio entortou (outra rebate). Ocê que tem olho grande, vê se não olha pra mim. Seu olho de cega morcego pé, de mata capim (uma diz)."
"Eu não olho pra ocê, vê se não olha pra mim.Pé de ranca toco, olho de queima capim (outra rebate).Em cima daquele morro tem um pé de mangabeira.O nome que te puseram foi fiote de lavadeira.Em cima daquele morro, tem um buraco de tatu.O nome que te puseram, sabuco de limpar c*.”Maria Benedita de Oliveira Moreira – 2018
Mulheres como Catirina faziam grande algazarra ao se envolverem em brigas quando se apropriava do alheio: batedouros, sabão, anil, poço e secador, assim como gerava intrigas ao fofocar sobre quem tinha sujado a água do batedouro.
A lavação de peças maiores e mais pesadas continha um valor de ganho diferente das demais, pois exigiam mais esforço e demandavam mais tempo. Geralmente, cobertores eram lavados uma vez no ano, levando-se em conta o pouco uso da peça, pagas separadamente, fora do sistema de mensalidade ou libras. A libra era composta de 30 peças, constituindo uma trouxa ou mala. Sendo que a mala poderia conter duas, três ou até quatro libras. Quando a trouxa excedia o número de libras, a mesma era dividida em duas, facilitando para a lavadeira transportá-la até o rio.
O pagamento pelo trabalho podia ser feito no ato da entrega das roupas limpas, quinzenal ou mensalmente. Isso quando a patroa dependia de salário público (professoras, militares, serviços gerais e outros). Quando o contrato era por mês, havia a possibilidade de escolha de uma ou duas trouxas por semana pela patroa, dependendo do número de pessoas em suas casas.
O desaparecimento das lavadeiras da Cidade de Goiás, impactou a memória afetiva da cidade. Elas eram a expressão de cuidado, zelo com a freguesia, uma vez que lidavam com discrição em relação a privacidade das famílias.
Em 1984, a lavanderia pública Santana foi construída no Alto Santana, localidade situada em uma comunidade quilombola da cidade. Com a ampliação no fornecimento de água às casas, poucas são as mulheres que utilizam o lugar, o que não implicou na mudança de função daquele espaço. A lavanderia foi restaurada em 1992 e em 2017, o que reforça a simbologia do lugar.
A cidade de Goiás tornou-se uma ‘cidade esvaziada’ pelo advento da transferência da capital, Goiânia, em 1933 que foi inaugurada oficialmente em 1942.
"As roupas do meu amor, não lavo com sabão.Lavo com jasmim e água do coração”Benedita Vicente de Oliveira
Essa exposição é fruto da tese de doutorado em Antropologia Social na Universidade Federal de Goiás de Gleidson de Oliveira Moreira.MOREIRA, Gleidson de Oliveira. “Vai pono sintido” - Os saberes das lavadeiras da Cidade de Goiás no saber fazer sabão de bola (Goiás, GO). Universidade Federal de Goiás, 2022. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/items/2b386d56-1a16-4429-bb69-9890ebc52e0e Contato: gleidsonhist@gmail.com
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